Por Samy Wursman
Os dois tapinhas que o Dr. Freitas lhe deu no bumbum, assim que nasceu, fizeram Lucinha chorar pela primeira vez. Doze anos depois, o bumbum já era bunda, e o Dr. Freitas a faria chorar novamente, quando cedeu a um ímpeto desenfreado de deslizar suas mãos pelas nádegas da menina, enquanto ela dormia. Por este tempo, Lucinha já sabia a diferença entre um carinho afetuoso, uma apalpada clínica e um sarro. Já havia lido O Médico e o Monstro, e encarou o gesto do Dr. Freitas com repugnância.
E a bunda crescia… Por debaixo das calças cada vez mais apertadas, um gigante adormecido ia se insuflando sem ser notado. Enquanto todos dormiam, na mansidão da noite, células adiposas e epidérmicas se agitavam freneticamente, dando relevo, volume, textura e cor ao traseiro que estaria sempre à frente, conduzindo por onde passasse as outras partes do corpo, como um comboio que segue o líder para não descarrilar.
Foi depois de umas palmadas do severo pai, por conta de alguma nota baixa na escola, que ela se revelou ao mundo em todo o seu esplendor. No terceiro tapa desferido, seu Moacir mirou mais fixamente a bunda da filha, e teve a sensação de que estava cometendo um pecado. Lembrou-se de Carla Perez, Tiazinha, Feiticeira… “Esta bunda vai ser patrimônio nacional, tombado. Como eu ouso tocar nela?”, ele pensou. “Se ontem eles comiam nossas bananas, hoje eles querem comer nossas bundas”.
Seu Moacir encheu-se de sonhos sobre o futuro da filha. Tirou-a da escola, matriculou-a em aulas de dança de “axé music”, em academias de lambaeróbica, em cursos de canto, e fazia arguição oral para checar se ela sabia as letras de todas as músicas de pagode. Como explicar para o leitor a perfeição daquela bunda? Era mais que o contorno. Era mais que a maciez e o colorido. Era mais que a rigidez e firmeza. Como uma obra de arte, a bunda de Lucinha podia ser apreendida pelos sentidos, mas não pela razão.
Apesar de provocar os homens usando shortinhos justos, biquínis encravados ou saias curtas que se suspendiam com um mero suspiro masculino, Lucinha jamais deixava homem algum tocar em sua bunda. “Esta bunda é uma dádiva do Senhor, sua criação sublime. Seria uma heresia alguém tocá-la”, dizia o pai zeloso. O Dr. Freitas ainda tinha o consolo de poder aplicar-lhe injeções quando ela estava gripada, mas era só.
Foi-se a virgindade e a bunda permanecia intacta. Podiam beijá-la na boca, acariciar-lhe os seios, possuí-la no maior fervor, mas que não encostassem um dedo na região sacra! E todos respeitavam a restrição imposta. Lucinha resolveu que também os objetos não poderiam mais tocar em sua bunda. Nenhuma cadeira. Nenhuma roupa. Nenhuma toalha. Só a chuva, o vento e os raios do Sol é que teriam o privilégio de estabelecer contato. Lucinha chegou a usar repelente, para afugentar os mosquitos mais excitados.
O sucesso chegou quando Lucinha foi convidada a rebolar num grupo de pagode e a posar em revistas masculinas. Ficou rica e famosa. Elegeu-se deputada, com o discurso de que toda mulher brasileira deveria ter acesso a uma alimentação básica que lhes desse o direito de ter uma bunda saudável e em forma.
Em uma de suas viagens pela África, foi coroada rainha de uma tribo local. Lá, então, comeram a bunda de Lucinha! Foi um grupo de canibais famintos. Que, posteriormente, se tornaram vegetarianos, para manterem eternamente o sabor daquela bunda em suas bocas…