Humor

“A responsabilidade da ofensa é de quem se ofendeu”, explica Gregório Duvivier

Postado por Simão Pessoa

Por Edson Aran

Gregório Duvivier é a trombeta do Leblon. Não o Leblon de verdade, que é um dos bairros mais agradáveis e charmosos do Rio de Janeiro. Mas sim aquele Leblon místico e semi-lendário que só existe nas redes sociais. Um lugar onde gente bem nascida aplaude o por do sol, vota no PSOL e aguarda a chegada do socialismo.

Bem nascido, Gregório é. Ele é filho do escultor e músico Edgard Duviver e da cantora Olivia Byington, além de descendente de uma rua em Copacabana, a Duvivier, batizada em homenagem ao comendador Theodoro Duvivier, responsável pela urbanização do bairro.

Aliás, um parênteses histórico: na Duvivier ficava o famoso Beco das Garrafas, onde surgiu a Bossa Nova. Ah! Outro parêntese histórico dentro no parêntese histórico: quem batizou o lugar de “Beco das Garrafas” foi o humorista Stanislaw Ponte Preta. Como se vê, tudo sempre volta para o humor.

Mas onde estávamos mesmo? Ah, é. Devido às suas posições de esquerda, Gregório Duvivier virou a voz desse Leblon imaginário, mas reduzi-lo a apenas isso é um grande erro. Gregório é ator, poeta, escritor e autor de alguns dos melhores esquetes do “Porta dos Fundos”, grupo de humor que ele co-fundou em 2012. Seu primeiro livro de poemas, “A partir de amanhã, eu juro que a vida vai ser agora”, de 2008, já chegou com elogios do Millôr Fernandes.

Além disso, o “Porta dos Fundos” foi … bem… “disruptivo” (*) e provocou um realinhamento de todo o humor televisivo do país, a começar pela própria TV Globo Golpista. O “Porta” levou o humorista para a “Folha”, onde ele assinou uma coluna semanal de 2013 a 2018. E a coluna o levou para a HBO, onde ele faz o “GregNews”, espécie de versão brasileira do “Last Week Tonight”, feito pela matriz americana com o humorista e comentarista político John Oliver.

Essa entrevista, feita via WhatsApp, é parte do projeto “O HUMOR NOS TEMPOS DA CÓLERA”, que discute a arte da graça nesse tempo desgraçado de chorumes e mimimis. Posteriormente, as conversas vão ser reunidas em um livro bem bacana e lindão.
Mas chega de blablablá porque a conversa é longa e já perdemos tempo demais nessa introdução.

Senhores e senhoras, com vocês, o Leblon Himself… GREGÓRIO DUVIVIER!

Todo mundo que faz humor concorda e repete aquela história de que se deve esculhambar o opressor e não o oprimido. Mas tem um truque aí, não? Todo grupo organizado usa a vitimização a seu favor. Ele só posa de oprimido enquanto não consegue ser o opressor, não é? O que você acha?

Concordo que é perigoso dividir o mundo entre oprimidos e opressores porque há muitos casos na história em que os oprimidos viraram opressores, mas nem sempre é assim não. Têm casos onde a opressão foi muito clara. Dizer que no Brasil, os negros não foram oprimidos e que é tudo vitimização e mimimi, não é nem perigoso, é criminoso, é bobo e é ignorância. Embora a divisão do mundo em dois seja perigosa, a negação de que existem grupos historicamente oprimidos e desfavorecidos é muito ruim.

“Charlie Hebdo”: no jornal francês, ninguém é intocável

Sim, mas até o Hitler se colocava como vítima do sistema financeiro mundial. E até o Anakin Skywalker achava que os Jedi eram uma força opressora na galáxia. Quer dizer… se todo oprimido é um opressor no armário, faz sentido a fórmula do oprimido e do opressor?

Mas o fato de que Hitler e Anakin se acharem oprimidos não diminui o fato de que pessoas foram de fato oprimidas. Essa relativização é muito perigosa. Se for por aí, o Mandela vira a mesma coisa que o Hitler. E tem uma maneira simples de saber quem está oprimindo: é quem está armado até os dentes. Por exemplo: um caso que eu acho que a esquerda leu totalmente errado é o caso do “Charlie Hebdo”. Alguns imbecis firam dizendo “gente, mas o ‘Charlie’ é um jornal islamofóbico, então eles eram opressores e os caras que entraram atirando se sentiam oprimidos por aquele humor…”. Oprimidos é o caralho! Quem entra atirando é o opressor e foda-se. Relativizar uma chacina é uma babaquice.

Tá, mas hoje em dia, por exemplo, tem muito mais piadas com pastor do que com padre ou pai-de-santo. E, na minha visão, eles estão todos no mesmo ramo, que é tomar dinheiro dos incautos dizendo que são íntimos do “amigo invisível” deles…

O humor tradicionalmente no Brasil sempre riu muito mais do pai-de-santo. Sempre tinha um pai-de-santo bem caricatural, com tintas bem carregadas, e não tinha padre e nem pastor. Tinha o Tim Tones, do Chico Anysio, mas era só. Tem um esquete lá no “Porta” que tem Ogum e Iemanjá e que eu adoro. E ninguém da Umbanda e do Candomblé jamais reclamou. O pessoal tem muito mais senso de humor. Mas se a gente fala muito mais de pastor é porquê não tem uma bancada de umbanda no Congresso. Ninguém bate na porta da minha casa perguntando se eu conheço a palavra de Oxóssi. A religião cristã, sobretudo a neopentecostal, é onipresente na vida do país e tem deputados para fazer leis que regulam a vida de todos nós, ateus, agnósticos, umbandistas, satanistas… É mais engraçado rir de quem está no poder. E o poder hoje é evangélico. Ninguém se elege no Brasil sem fazer alianças com os neopentecostais.

Mas como fica o humor nessa história? Alguns grupos devem ser poupados?

O humor tem que continuar sendo regido pela graça. O problema desse humor machista, homofóbico e tal, desse moleque do Twitter, é que não tem graça mesmo. É velho. O humor não pode ser reprodução. Para ter graça, tem que ser a criação de algo novo. E aí vem lá o moleque achando que tá sendo muito zoeiro, brother! Isso é que me irrita. A pessoa acha que está sendo muito corajosa de ser machista, como se o mundo fosse governado pela Susan Sontag, como se a presidente dos Estados Unidos fosse a Judith Butler e não o Trump. Ao fazer uma piada machista, o cara está se alinhando com o poder. Ele está fazendo um humor velho, de repetição… é muito pouco engraçado e muito careta, porquê é ruim, bobo, repetitivo, velho e sem graça.

Mas será, Gregório? Porquê o poder político é transitório. Trump não vai ficar pra sempre na Casa Branca, thanks God. O poder cultural é muito mais efetivo. Nesse sentido, eu acho que é preciso ter ‘cojones’ pra fazer piadas com feministas sim. Eu mesmo fiz uma lista aqui no REPÚBLICA, “cantadas infalíveis para pegar feministas”, que nem era machista, era apenas provocativa. E elas atacaram em hordas, pareciam Bolsonaristas. Enfim, tirar sarro de feminista não exige “cojones”? Você, inclusive, já teve que pedir desculpas por causa de uma piada que ofendeu feministas…

Não, acho que não. Continuo achando que o machismo é muito mais poderoso. O ataque deve ter sido o quê, de dez pessoas? [Nota do REPÚBLICA: foram bem mais de 10, talvez umas 200] Eu mesmo já sofri isso, quando fiz a piada que você citou. Foram dez pessoas, no máximo. O ataque do machismo envolve centenas de milhares de pessoas. O feminismo elege uma vereadora, mas não elege uma deputada. Eu sei que você está falando do poder cultural, mas mesmo assim… veja, as novelas, o Faustão, o Luciano Huck e o Ratinho, o Danilo Gentili… o poder cultural é desses caras. Nós vivemos em bolhas progressistas, em lacrosferas. Dentro delas, o feminismo é hegemônico, mas fora delas não é não. O feminismo está aí faz 50 anos e não chegou ao poder e nem vai chegar tão cedo. E a prova disso é que você usa “cojones” para significar coragem… [Nota do REPÚBLICA: foi proposital mesmo]

Quando um grupo de ativistas passa a ter força pra impedir uma piada, proibir um peça, impedir um filme, uma série, um show, um vídeo no YouTube… ele ainda assim é um grupo de oprimidos?

Cara, nesse sentido, eu tenho o mesmo incômodo que você. Me incomoda quando se proíbe uma peça… [Gregório tosse bastante] Porra, tô no México, aqui é poluído pra caralho. Os áudios que eu estou cancelando é porque eu começo a tossir no meio [mais tosse]. A cidade é do caralho, mas o ar, brother… São Paulo fica parecendo a Amazônia. Onde eu estava? Ah, sim. Eu acho que quando o oprimido proíbe, ele vira um opressor. Eu odeio a palavra “ofensa”. A responsabilidade da ofensa é de quem se ofendeu. Eu não sou responsável pelos brios alheios. E quando o cara se ofende e quer proibir um espetáculo, um filme, qualquer porra… isso é de uma babaquice sem tamanho. Uma vez eu estava numa reunião com pessoas super de esquerda e alguém falou: “Quando um oprimido fala, o opressor tem que calar a boca!”. Calma aí! Quem manda calar a boca é o opressor, né? Proibir é oprimir. Censurar é oprimir. O humorista que faz piada racista tem que se ver com o público dele. A ofensa não se combate com censura, se combate com piadas melhores e com boicote mesmo. Ninguém é obrigado a consumir o cara. Ele vai se foder de mil maneiras, como aconteceu com o bosta do Twitter. Mas proibir não é o caminho. A proibição é muito tentadora e no geral, só se proíbe a substância que é gostosa. Se eu sou pela legalização de tudo, inclusive das drogas, também tenho que ser a favor da legalização das piadas ofensivas…

Vamos falar do caso do Jacaré Banguela mais diretamente. A piada foi de mau gosto, nem discuto isso. Mas o fato é que vários sites se engajaram numa campanha contra o cara e ele acabou perdendo o emprego. Isso é quase “1984”. É certo isso?

Cara, eu não vi “1984” no caso do Banguela não, porquê não vi o Estado proibindo o cara… O que eu vi foi uma empresa demitindo o cara porque não tinha interesse em ter nos quadros dela um sujeito que faz piada racista. Não acho que a empresa tenha feito isso por pressão ou medo de processo, mas por questões de mercado, pois não interessa a ela perder anunciantes. São as leis de mercado gerindo uma empresa.

Jacaré Banguela e a foto de Will e Jaden Smith, razão de toda a polêmica envolvendo o humorista

Há algum tipo de censura aceitável ou toda tentativa de inibir a criação é inaceitável?

Qualquer censura é inaceitável, mas isso não quer dizer que as pessoas não tenham o direito de ficarem putas. Porquê assim como o Danilo Gentili, o Jacaré Banguela ou qualquer outro desses humoristas têm o direito de falar a merda que quiserem, todo mundo tem o direito de falar a merda que quiser em relação à merda que eles falaram. Inclusive, eventualmente, até de falar merda pro chefe deles e pedir que eles sejam demitidos. O direito à liberdade de expressão não pode ser só pro humorista, tem que ser pro público também.

Por conta do REPÚBLICA, fico muito tempo nas redes sociais e ando chocado com o que leio. Tem gente da Direita querendo dar tiro em gente da Esquerda e gente da Esquerda querendo guilhotinar gente da Direita. E de vez em quando esse tipo de raciocínio torto sai até impresso em jornal. Tá todo mundo doidão? A democracia deu o que tinha que dar?

Olha, eu acho o embate positivo, sabia? Não sou tão pessimista quanto você nesse aspecto não. Acho que as pessoas estão finalmente brigando por alguma coisa que importa. Antigamente tinha uma falsa conciliação e a ideia de que estávamos todos no mesmo barco. O Brasil era um grande gigante sereno e todo mundo concordava. Concordava, o caralho. O Brasil é um país que tem divisões muito profundas e acho positivo que as divergências aflorem. Nossa democracia só existe à base de um silêncio gigantesco. As pessoas não discutiam no Brasil, todas as nossas tentativas de insurgência acabaram em genocídios e agora temos, finalmente, um embate quase inédito em um país que tinha uma narrativa só. O que estamos vendo agora é o surgimento de novas narrativas e acho que isso é muito positivo.

Não concordo muito com isso não. Desde a democratização, todos os governos do Brasil foram de centro ou centro-esquerda, o que acho bom. E de uma certa forma há uma continuidade no avanço dos direitos na sociedade…

Cara, vou discordar radicalmente de você. Não acho mesmo que o Brasil tenha sido governado pela Esquerda. Mesmo! Não há nada em comum entre Collor, FHC, Lula e Temer. Nada mesmo. O Collor era um debilóide autoritário. Pra mim, esquerda tem a ver com transferência de renda e de poder, com horizontalidade, com participação popular. Só Lula fez um pouco de transferência de renda. O que marcou o governo do Fernando Henrique foram as privatizações. E mesmo o governo Lula foi a abertura pro capital estrangeiro. A grande obra dele foi pagar a dívida externa e passar a ser credor do FMI. O Temer, então, é um governo que apenas desmontou e vendeu as riquezas do país. Foi a única coisa que ele fez. A não ser, claro, que você compreenda a esquerda como o fisiologismo, o autoritarismo, aí, sim, claro, o Brasil só teve Esquerda no poder. Mas minha concepção de Esquerda é outra.

A criação do “Tá no Ar” e a reformulação do “Zorra” na Globo são resultados do sucesso do “Porta dos Fundos”, né? O Marcius Melhen é um cara genial, mas ele só conseguiu mais espaço lá dentro por causa de vocês. Como você se sente influenciando uma das maiores redes de TV do mundo a partir do YouTube?

Eu fico muito feliz de ver a Globo abrindo a cabeça e não sei se tem a ver com o “Porta dos Fundos”. Tendo a achar que tem a ver com o mundo inteiro obrigando ela a se abrir. Tem o “Porta”, mas tem a Netflix, tem o “Family Guy”… Hoje em dia o espectador está exposto a um humor totalmente diferente Antigamente, eles diziam “Mas é disso que o espectador gosta, gosta de bordão, de um cara de peruca, olhando pra câmera e falando sempre a mesma frase, rico imitando pobre…” Tinha algumas que eles achavam que era engraçado e pronto. Mas a Internet e o streaming, as novas mídias, provaram que o espectador brasileiro não é tão conservador como a tv apregoava e eu gosto muito do resultado dessa abertura de cabeça, do “Tá no Ar”, do novo “Zorra”. A televisão melhorou muito nos últimos 10 anos e acho que essa mudança é por causa da Internet, de modo geral.

Antes do “Porta”, já existia o “Anões em Chamas”

O “Anões em Chamas”, que você fazia, já era um troço muito engraçado e muito bem feito, mas o sucesso só veio mesmo com o “Porta”. Por quê? O que fez virar a chave?

Foi no “Porta” que a gente parou tudo o que estava fazendo pra fazer uma coisa só, virar o projeto da vida. Não era mais hobby e nem um trampolim para fazer outra coisa, era o projeto final, aquilo que a gente queria fazer

O “Porta dos Fundos” tem alguns esquetes que já são clássicos, tipo o “Deus da Polinésia”, “Rola”, aquele da guerra que parece um começo de festa, o da “Gostosa” , o do “amigo secreto constrangedor”. Enfim, citei esses de memória, mas tem muito mais. Pela concisão e objetividade, esquete é a grande arte do humor, não é? Quem são seus mestres? O que você curte? O que você vê?

Os mestres pra mim são Pedro Cardoso, Luís Fernando Guimarães, Fernanda Torres… essa geração que veio antes da minha para fazer humor de uma maneira muito verdadeira, sem imitações, sem vozes e trejeitos, muito despojada de maneirismos e de compsosições, mas com muita verdade. É a geração que me faz rir mais. A minha geração é filha dessa. Mas tem caras da minha geração que também me influenciaram. O “Hermes e Renato”… eles são muito bons. Eu rio muito com eles. Aquilo que eles faziam na MTV era brilhante. Os moleques do Z.É… o Adnet, o Queiroga e o Caruso. Aprendi muito com eles. Eu tinha 16 e eles tinham 21, então eles eram ídolos mesmo. Eu aprendi muito contracenando com eles.

O esquete é muito menos valorizado do que um roteiro de série ou filme, da mesma forma que um conto jamais será tratado como um romance. Isso te incomoda de alguma forma?

Tem uma sabedoria no formato curto que não é óbvia. E no Brasil, a gente, de modo geral, é bom nisso. Pô, na literatura, nós somos mestres da crônica e do conto. O “Porta dos Fundos” se insere nessa tradição. Se fosse literatura, ele teria micro-contos. Eu gosto muito desse tipo de literatura e de narrativa. Mas isso que você falou é verdade: não é muito premiado e reverenciado o gênero curto. E tem uma uma sabedoria ali que não é nada fácil. O conto tem que vencer por nocaute. E o esquete é assim também, tem que nocautear em três minutos. Mas isso não me amargura nem um pouco, porque a gente não faz isso pra ser reconhecido, mas para as pessoas se divertirem.

Aliás, o drama sempre será mais valorizado que a comédia. O que você pensa disso?

Me incomoda mais a distinção entre as duas coisas. Tem esquetes do “Porta” que são meio tristes, que você nem sabe porque está rindo. E tem dramas que você começa a rir no meio, que são engraçados de alguma forma. A divisão entra drama e comédia, assim como a divisão entre Tv e Internet, tende a se tornar um pouco mais fluida.

Fábio Porchat bem deprê no pôster de “Entre Abelhas”

Será que foi por isso que o Porchat fez aquele filme chato sobre abelhas? Humorista tem vergonha do humor que faz? Humorista quer sempre falar sério?

Porra, eu adoro o “Entre Abelhas”, acho um puta filme. E gosto muito quando comediantes fazem drama, acho do caralho o Steve Carrell fazendo drama. Ou o Jim Carrey. Os melhores filmes do Jim Carrey são os drmáticos. O comediante quando vai fazer um drama, ele leva um tempo que é só dele e uma verdade que é só dele também. No drama, você pode mentir. Na comédia, não. Na comédia você tem a obrigação de ser verdadeiro. O contrário é que não funciona muito bem. O ator dramático trabalha com composição, então ele vai pensar no sotaque ideal para fazer aquilo, quando na verdade é só falar, só sentir. O comediante é mais sincero mesmo.

Por falar em falar sério, por quê você desistiu da coluna da “Folha”?

Cara, eu estava com a sensação de que já tinha dito tudo oque tinha pra dizer, tinha a impressão que já tinha espremido até o fundo os meus assuntos. Foram cinco anos escrevendo toda semana e eu não queria virar um daqueles colunistas que têm uma coluna só, sabe? Ou duas. E fica alternando entre elas. Eu estava assim: falava da minha filha, falava de política… E estava muito tentador falar da minha filha porquê ela mudou a minha vida. E filho é uma obsessão, né? Eu não queria virar aquele pai crônico, obcecado, então preferi viver minha filha em vez de escrever sobre ela. [Gregório ocupa temporariamente o espaço do Ruy Castro na página 2, mas é só por um mês]

Você certamente deve ter visto o John Cleese, o Terry Gillian e o resto da trupe do “Monty Python” esbravejando contra Shane Allen, head de comédia da BBC, que cancelou as reprises do “Flying Circus” argumentando que faltava “diversidade” ao grupo. Sou a favor de ‘cotas” mas, fala sério, quando a ‘cota’ fica mais importante que o talento, algo está muito errado, não está?

Sou super a favor das cotas em abientes públicos e representativos, mas nas comédias e nas artes, não. Um grupo de comédia não tem a função e nem a obrigação de representar a sociedade. E tem mais: não se pode julgar com o olhar de hoje coisas feitas no passado. A questão sobre Monteiro Lobato, por exemplo. O cara era super-racista, mas a gente vai fazer o quê? Vai queimar os livros dele? Sou a favor de que a gente tenha uma leitura crítica, apontando o preconceito que existe ali. No caso do “Python”, acho que vale apontar algumas coisas. As mulheres são sempre figurantes, por exemplo. Mas cancelar ou proibir é uma estupidez.

Na HBO, você faz uma espécie de versão brasileira do John Oliver. E o Oliver era engraçadíssimo no “The Daily Show”, mas foi aos poucos abandonando o humor e virando um pregador político beeeem chato, uma espécie de Dennis Miller da Esquerda. Você teme que o mesmo aconteça contigo?

Eu discordo do seu diagnóstico, eu rio muito com o John Oliver. Às vezes, ele é mais político do que engraçado e isso é um perigo mesmo. No programa, a comédia tem que vir sempre primeiro. Se o programa for mais engraçado, vai ser mais eficiente politicamente. As pessoas vão rir mais, então vão compartilhar mais. Mas gosto bastante do Oliver, do Stephen Colbert, do Jon Stewart, desse humor político que não deixa de ser engraçado.

John Oliver em “Last Week Tonight”, da HBO: parece humor, mas é só ativismo

Na entrevista com a Laerte, ela critica uma certa vertente direitista do stand up. Depois da entrevista, eu comecei a olhar pra essa cena com mais cuidado e percebi que existe mesmo um humor de Extrema-Direita no Brasil, um humor bolsonarista. Já tinha notado isso em parte do humor gráfico, mas parece que o fenômeno é maior. O que que aconteceu? Nós descobrimos o alt-right? Ficou cool ser de Direita?

Existe de fato hoje mais humorista de Direita do que de Esquerda no Brasil. E acho que a culpa é da Esquerda. A Esquerda ficou sem graça mesmo. A Direita é ridícula e a Esquerda é insuportável. E o ridículo é muito mais atraente do que o insuportável. O Bolsonaro é um imbecil, mas ele tem graça para os fãs dele. Ele é um bufão. Ele trabalha exacerbando o que existe de pior no ser humano e isso é engraçado para quem gosta dele. A Esquerda, não. A Esquerda se leva a sério, processa, se ofende. Então a Esquerda ficou chata enquanto a Direita continua patética e ridícula, mas é quem está levantando a bandeira libertária hoje. Nesse sentido, a Esquerda tem que aprender . Falta humor à Esquerda. E acho até que a força do Lula vem disso também. Assim como o Bolsonaro, ele é engraçado. Você pode gostar dele ou não, mas ele é engraçado, ele é um palhaço, no bom sentido da palavra. Ele trabalha as falhas dele, ele não tenta ser o que não é. A força midiática dele vem muito do cômico.

O alt-right está em alta por quê o Establishment Cultural brasileiro é todo de Esquerda?

Olha, acho que não é não. Talvez na USP… mas nem lá. A Economia é muito mais ortodoxa do que heterodoxa. Veja os jornais, veja “O Globo”, veja a “Globonews”. Numa palestra de ciências sociais no Rio só tem gente de esquerda, claro, mas em termos de alcance, a Direita é muito mais presente. Muito, muito mais…

Vamos continuar na provocação então: dá pra ser iconoclasta e elogiar o Chico Buarque ao mesmo tempo? Porque, convenhamos, se existisse um verbete sobre “Establishment Cultural” na Wikipédia, ele teria a foto do Chico Buarque, não teria?

Mas mesmo assim… Nossos grandes ídolos, nossos reis… quem são? São o rei Pelé, o Roberto Carlos, a Xuxa… todos conservadores politicamente. “Ah, mas eles não falam muito de política…” Pois é, mas essa é uma atitude conservadora! A Xuxa nunca se engajou com nenhuma pauta de Esquerda, mas faz reunião escondida com o Bolsonaro. Você acha que o Roberto Carlos vota em quem? Nossos papas culturais estão muito mais à direita do que à esquerda. Foi o tempo em que o Chico era unanimidade. Elogia-lo hoje nas redes é muito mais perigoso do que elogiar o Sílvio Santos, por exemplo. O cara só fez merda a vida inteira, ficou rico graças à ditadura, nunca fez nada que prestasse, mas virou ídolo, virou unanimidade. O João Vicente falou no programa do Fábio [Porchat] que o Sílvio Santos era machista e caíram em cima dele. Foi o tempo em que todo mundo só elogiava o Chico e o Caetano. Por isso que é importante elogiá-los. Pra mim, eles são os maiores artistas vivos do país e estão entre os maiores do mundo. Multidões aplaudem o Caetano e Chico em qualquer lugar do mundo. E no Brasil eles são artistas que mamam na teta da Lei Rouanet. Eu, sinceramente, gostaria que eles fossem um pouquinho mais unânimes. Eles são meu Establishment Cultural pessoal, aquilo que o Brasil deveria ser. Caetano disse que o Brasil devia merecer a Bossa Nova, pra mim o Brasil devia merecer o Caetano.

Você prefere um governo de Direita pra fazer humor do contra ou um governo de Esquerda pra fazer humor a favor?

Queria um governo de Esquerda para fazer humor contra porque não existe humor a favor. A gente nunca fez humor a favor. Sempre que falou do PT, a gente bateu forte. Os petistas até reclamam muito, chamam de pelego. E bateu em coisas específicas. A Direita fica chamando o Lula de ladrão, de bêbado, enquanto a gente pesquisou e fez programa sobre a Kroton, que cresceu muito no governo dele. O Lula viaja no jatinho do dono da empresa e isso eu nunca vi ninguém de Direita falar. Então eu prefiro um governo de Esquerda pra fazer humor contra, porque vai ser mais inteligente. É um saco falar mal do Temer, é muito fácil. O cara é um vampiro sanguessuga com aquela cara de mordomo de filme de terror. É como o Trump nos Estados Unidos, um alvo fácil. A Direita se presta tanto ao ridículo que facilita demais o trabalho dos humoristas. E com um governo um pouquinho mais sério, a tarefa vai ser mais desafiadora, logo mais prazerosa. E, só para terminar, eu gostaria de citar uma frase do Millôr: “Eu não gosto da Direita porque ela é de direita e não gosto da Esquerda porque ela é de direita”.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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