Humor

“O povo está doido pra rir de tudo, mas fazer chorar parece mais fácil”, constata Leo Jaime

Postado por Simão Pessoa

Por Edson Aran

Como assim? Leo Jaime numa série de entrevistas que discute o humor? Sim, Leo Jaime, claro. O humor está presente na música brasileira desde o primeiro samba gravado em 1916, “Pelo Telefone”, uma crônica bem humorada de Donga. “O chefe da folia / Pelo telefone manda me avisar…”

Infelizmente, os tinhorões chatos que se debruçam sobre a história da música brasileira preferem o chorume, o mimimi, a dor de cotovelo e o baixo-astral. E isso é um erro porque, apesar do monstruoso COISO que ameaça arrebatar o poder, nós somos um povo feliz, engraçado e bem humorado. Ou, pelo menos, é que o deveríamos ser.

No pós-ditadura, quando o humor brasileiro foi completamente transformado, os principais agentes foram a turma do “Casseta e Planeta”, “Los Três Amigos” Glauco, Angeli e Laerte e o teatro Besteirol. Mas teve também – e talvez principalmente – a música, que tinha um alcance muito maior. Eram bandas desencanadas e de nomes esdrúxulos tipo Biquíni Cavadão, Gang 90 e Absurdettes, Kid Abelha e os Abóboras Selvagens, Ultraje a Rigor, Paralamas do Sucesso, Titãs do Iê-ie-iê e João Penca e seus Miquinhos Amestrados, onde estava o Leo Jaime.

E antes dessa turma dos 80 teve uma infinidade de marchinhas carnavalescas sacanas e forrós de duplo sentido. Fora uma lista enorme de artistas engraçados que inclui Noel Rosa, Adoniran Barbosa, Mutantes, Genival Lacerda, Tomzé e Raul Seixas. E ainda tem Língua de Trapo, Eduardo Dusek, Premeditando o Breque e Mamonas Assassinas. E certamente um monte de gente que agora eu não vou lembrar.

Leo Jaime, todo mundo sabe, é autor de “Sônia”, “Cobra Venenosa” e “Calúnias” (mais conhecida como “Telma eu não sou gay”), entre muitas outras. Ele também é roteirista e escritor. Fomos até colegas no Blônicas, um coletivo de cronistas organizado pelo Nelson Botter Jr ali por volta de 2010, embora a gente só tenha se conhecido pessoalmente quando eu fazia parte do time de roteiristas do novo “Zorra”.

Esqueça o baixo-astral dessa eleição chata e divirta-se com a conversa e os opiniões de… LEO JAIME!

(ah, essa é a primeira entrevista do REPÚBLICA DOS BANANAS com trilha sonora, o que a deixa muito mais legal. Som na caixa, Caçulinha. ).

Você ainda canta “Sônia”? “Sônia” é sobre ereção e punheta, né? As feministas nunca te chamaram pro pau?

Canto, claro! Não é sobre ereção e menciona masturbação como também cunilinguus e sexo anal. É sobre aquela confusão juvenil entre paixão e tesão. É a canção de amor mais sincera que eu podia escrever, com meu parceiro Leandro Verdeal, quando tínhamos 18 anos.

“Você na frente, eu atrás e atrás de mim um outro rapaz”. Que putaria, Leo. Você inventou o poli-amor?

Esta música começou com o papo: como você fez a sua primeira música? Mencionei que eu frequentava uma domingueira no Santapaula Iate Clube, em Interlagos, em São Paulo, e que lá a banda sempre tocava “Sunny”. Tive a ideia de escrever uns versinhos para uma menina que eu estava a fim, porque eu era e sou muito tímido. Escrevi os versos com capricho pra ser uma versão de “Sunny”. Na hora da música, pedi a atenção dela para cantar a música, mas no primeiro verso, ela deu as costas e foi papear com as amigas. Foi meu primeiro grande fracasso. Leandro me alertou: é que você não deve ter escrito uma letra impactante. E daí nos escrevemos uma letra impactante pra “Sunny” virou “Sônia, que é de 1983. Numa época de ditadura e censura, foi impactante. Hoje eu acho que ela é só sincera.

E “Telma, eu não sou gay”, você canta? “Eu deixei aquela vida de lado e não sou mais um transviado”. Isso não dá rolo com essa bicharada chata pra cacete que tem hoje em dia?

Esta nem eu e nem os “Miquinhos” cantamos. O Ney Matogrosso que foi quem a gravou no primeiro disco dos “Miquinhos”, que eu só produzi, já que estava em outra gravadora prestes a dar início à minha carreira solo. Escrevemos a música na volta de um ensaio em que estávamos em oito dentro de um fusca e alguém, no meio da balbúrdia, cantarolou “Tell Me You Once Again” e eu comentei “Telma, eu não sou gay”?! Aí eu e o Leandro, Abreu pedimos para deixar a gente na praia de Ipanema e, ali na areia, escrevemos os versos. Não deu rolo, não. Também, foi interpretada por uma das figuras mais importantes e respeitadas da nossa música. Ney me ajudou muito gravando minhas músicas antes que eu mesmo começasse a cantá-las.

Seria possível gravar hoje em dia uma música como “Betty Frígida” da Blitz?

É uma música sobre um casal “tradicional” e travado. Acho que poderia ser gravada, sim. Adoro esta música. Adoro a Blitz.

Quando eu estava na “Playboy”, nós entrevistamos o Lobão e ele defendeu a tese de que o rock dos anos 80 era só superficialmente superficial. Boa essa, né? Quer dizer, segundo ele, a “superficialidade” era uma proposta mesmo, para se contrapor à chatice da MPB. Era isso? Você concorda?

Lobão é muito bom frasista. Nós queríamos pintar o mundo, deixá-lo mais colorido, alegre, otimista, depois da longa e tenebrosa madrugada que foi a ditadura. Concordo com ele. Não acho que havia frivolidade, mas foi uma última lufada de inocência antes que o cinismo engolisse tudo.

Lobão comenta também que o Júlio Barroso, da “Gang 90 e Absurdettes”, era meio o mentor desse movimento e que tudo ruiu depois da morte dele. O que você acha disso? [Júlio Barroso, jornalista e músico, caiu da janela do seu apartamento em São Paulo, que ficava no 11º andar. A morte é considerada um acidente. Ele foi parceiro de Lobão, Ritchie e Alice Pink Pank, entre outros]

Não me sinto bem comentando as opiniões alheias. Acho que foi um momento construído por muitos talentos e sem nenhuma liderança. Em cada relato que leio mencionam uma pedra fundamental diferente, um grande inspirador … Para mim, começou com um bando de gente reunida em frente ao hotel “Sol e Ipanema”, perto da antiga Rua Montenegro, hoje Vinícius de Moraes, que à época estava vivo. Débora e Flavio Colker, Asdrúbal Trouxe o Trombone, Jaque e Isabel do vôlei, Pedro Bial e sua turma de poetas, Cazuza, Pedro Cardoso e Felipe Pinheiro, a Turma do Despertar, Marina, Elba, Caetano, Ney… Todo mundo ia lá quase todo dia e todo mundo trocava figurinhas. Mas também há quem diga que começou em São Paulo. Prefiro acreditar que começou em todo canto e todos os envolvidos criaram esta cena que demorou alguns anos para se estabilizar. Foi uma uma moda de verão. Um verão que nunca acabou.

Isso que você diz de ter começado em São Paulo, mas exatamente com quem? Arrigo Barbané, Titãs, RPM? Esses caras?

Era uma cena sendo montada em muitos lugares e as danceterias eram o espaço de convivência. Arrigo eu não enquadraria nisso não, mas Júlio Barroso era pedra fundamental sim. Titãs e RPM vieram um pouco depois.

Nos anos 80, todo mundo era contra os militares, mas era, principalmente, contra os chatos, né? Ninguém queria mais saber de general, mas também não aguentava mais escutar o Chico Buarque cantando “Cálice”. Voltaram os milicos e também o Chico cantando “Cálice”. Será que nós morremos e fomos pro inferno, Leo?

Nós tínhamos – e temos ainda – o maior respeito pelos monstros da MPB. Mas nosso trabalho não era tão sofisticado, nem tão acadêmico ou intelectual. Era mais visceral. Nós adorávamos Benjor, Tim, Roberto e Erasmo, Rita, Raul… um monte de gente que não gozava de tanto prestígio, embora fizessem um enorme sucesso. Rita Lee apelidou a gente de “Música Pra Pular Brasileira”. Tudo bem, eu acho que jamais vou ganhar um prêmio. Mas tem tanta gente feliz, cantando e dançando, nos meus shows! É pra eles que eu canto e escrevo. E, de alguma forma, este repertório da minha geração permaneceu no cancioneiro brasileiro ao lado dos gênios que mencionei. Sou filho de Rita com Erasmo. Ou então o irmão mais novo. Ah, e afilhado do Raul! O humor e a crônica sempre foram coisas muito sérias para mim.

Na revolução do humor que aconteceu naquele pós-ditadura teve o “Planeta Diário” e a “Casseta Popular”; o Angeli, Laerte e Glauco em São Paulo, o teatro Besteirol… mas teve também, e principalmente, acho, a música, né? Porque a música tocava no Chacrinha, era muito mais popular. Como você vê aquele momento?

Era bem divertido. E toda hora aparecia alguém novo… nas HQs, no cinema, no teatro, na dança… uma banda nova, um intéprete com um trabalho interessante. Marcelo Rubens, Paiva, Mauro Rasi, Vicente Pereira, o “Planeta”, a “Casseta”, a “TV Pirata”, “Armação Ilimitada”. Acho que era o projeto tropicalista tomando vida. E o Chacrinha era a geléia geral, misturava tudo no programa dele. E era onde nos encontrávamos também, no camarim do programa dele. Durante muitos e muitos anos. O Brasil não é um país sério. Não pode ser representado por uma música exclusivamente séria. Uma curiosidade sintática: uma pessoa séria é sinônimo de quem tem credibilidade ou é confiável. Logo, uma pessoa divertida não merece tanto crédito… Comediante não ganha prêmio. E músicas engraçadas entram no coração e na mente das pessoas, mas não na lista das “100 melhores do Brasil” que a revista “Bravo” fez há alguns anos, consultando um monte de críticos, não tinha uma música bem-humorada sequer. E boa parte delas tinha a palavra “morte” em seus versos. Temos muito mais respeito pela tragédia do que pela comédia. Lamartine Babo era um mestre, a marchinha de carnaval e traduzia o humor político do brasileiro, muitas vezes de forma incorreta. O povo está doido pra rir de tudo, mas fazer chorar parece mais fácil. Ou talvez seja mais difícil, não sei. Não sei se é.

“Cobra Venenosa” é quase uma marchinha, né? Ainda pode cantar “que pica, que pica” ou as feministas caem de boca? Pra falar mal, bem entendido…

(Risos) “Cobra Venenosa” é uma marchinha. Tem jogo de palavras e tal. Não vejo porque as feministas poderiam reprovar. Sempre fui feminista. Estou nesta luta, sempre estive. Assim como na luta contra a homofobia. Somos todos iguais e deveríamos ter todos os mesmos direitos.

https://www.youtube.com/watch?v=0xooImW5EJE

Mas o que você acha desses grupos de pressão que querem censurar marchinhas? Não pode mais cantar “O teu cabelo não nega, mulata”. Não pode cantar “índio quer apito”. Não pode cantar “Maria Sapatão”. É possível brincar carnaval com tanta patrulha?

Acho que censura é sempre indesejável. Kid Morengueira cantava, em “Na Subida do Morro” que “você bateu na minha nega e não se bate em mulher que não é sua”. Era o retrato de um tempo, de um estado de coisa lamentável, que por sinal ainda não acabou. Somos líderes em feminicídio e assassinatos de LGBTs no mundo. Nós, homens brasileiros, temos uma conta enorme a acertar. As artes devem retratar o seu tempo. E algumas coisas deixam de ser atuais, mas continuam como um retrato de algo que fomos. E talvez ouvir estas coisas seja bom para não repetimos o passado. Ficar reclamando de quem luta para mudar esta realidade, mesmo que inicialmente pareçam estar censurando, é um pouco querer manter a cultura que normatiza ou acha normal chamar um cara de “viado” quando se quer depreciá-lo. Se quiser brincar de depreciá-lo é só chamar de “cafajeste”, “tosco”, “preconceituoso”, “babaca”. Não de “viado”. Não há nenhuma falha de caráter em se fazer na cama o que se quer com quem se quer. Não somos o que fazemos na cama. Isto não nos define. Somos um monte de coisas misturadas. Acho que esta não era a resposta que você queria…

Que nada, eu gosto mesmo é de perguntar. Escuta, em São Paulo tem uns blocos de carnaval que são quase partidos políticos que desfilam. Em vez de cantar marchas, eles organizam marchas. Já burocratizaram o carnaval de rua aí no Rio também ou isso é só coisa de paulistano babaca?

O carnaval de rua aqui é ótimo. Muito criativo e animado. E vem gente do mundo todo curtir. Fico impressionado que tem bloco que começa sete da manhã em ponto. Eu não consigo me imaginar colocando despertador para ir pular carnaval e beber cerveja antes do café da manhã. Mas quem vai, ama…

Você escreveu “Solange” para a censora Solange Hernandes, que trabalhava na Polícia Federal. Era pior quando tinha apenas uma “Solange” ou é pior hoje, com as redes sociais infestadas de “Solanges”?

Hoje a censura vem de todos os lados. Odiar está na moda. Meter a boca nos outros virou hobby. Você não faz porra nenhuma que preste e mete a boca em quem está fazendo alguma coisa. Ora, se não te agrada, pega seu boné e vai dar atenção a outra coisa. Encher o saco dos outros é tendência. Mas tem um povo aí que é doido pra voltar com a censura. Isso é outra coisa que está na moda: defender falta de liberdade.

Existe uma tradição muito rica de humor na música brasileira que passa por Noel Rosa, João de Barro, Adoniran, Mutantes, Blitz, Eduardo Dusek, Língua de Trapo, Mamonas Assassinas… e você, é claro. Enfim… dava pra fazer a entrevista inteira só sobre isso. Mas por quê na hora de contar a história da nossa música só entra o chatice, o chorume e o mimimi? Nós somos um povo chato?

(risos) Talvez seja isto. Ou talvez nos levemos muito a sério. Esse negócio de “país do futuro” deve ter dado uma certa ilusão de que somos mais sérios do que somos na verdade. O Brasil é um país com um passado promissor.

Na verdade, se a gente pensar bem, “Pelo Telefone”, que é nosso primeiro samba gravado em 1916, já vai meio pelo humor, não?

Sim!! pelo telefone o chefe da polícia mandou avisar… era humor, irreverência, gaiatice… uma marca da música brasileira: a crônica. Pairando sobre a realidade de seu tempo.

E “Mamomas Assassinas”? Você curtiu?

Adorava os “Mamonas”. Disseram que o João Augusto teria dito ao contrata-los: “Já deixei de contratar os Miquinhos, estes eu não vou perder”. Porque tinha muito a ver: iconoclastia, humor juvenil, um apelo infantil enorme. Coisa que a Blitz também tinha. E muito.

Mas se a gente é tão bom nisso, por quê temos vergonha de sermos engraçados, Leo? Vamos cantar “Cálice” forever? O mundo caminha inevitavelmente para a bunda-molice. Ou para a pau-molice, como diz o Lobão?

Eu não tenho medo de ser engraçado não. Vejo muita gente nova fazendo música divertida. Falta é dar luz a estes novos talentos. O problema é que o mundo está em quinta e de marcha-a-ré, como diria Elvis Costello.

Bem, o primeiro turno da eleição já foi e o panorama é ainda mais conservador do que antes. E aí? Já pensou em regravar “Cálice” em versão rockabilly?

Eu nem sei se existe uma música pra isso. Das minhas seria “Nada Mudou“…

https://www.youtube.com/watch?v=feVNLdY8M8E

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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