Por Edson Aran
Nós usamos a expressão “Indústria dos Quadrinhos”, mas nunca, jamais, “Indústria da Literatura”. Bem feito pra literatura. E bem feito pra todos os escritores que sofrem pela humanidade com o coração sangrando e o bolso vazio. Indústria pressupõe a existência de cliente, consumo, produção e, consequentemente, dinheiro. Mas nas HQs, como nos livros, quem fatura é o editor, claro.
“Popeye”, por exemplo, sempre pertenceu ao King Features Sydicate, o maior distribuidor de tiras do mundo e não ao seu criador, E.C. Segar. Segar morreu precocemente em 1938, aos 44 anos. Na época, Popeye já estava no cinema e também em vários produtos licenciados.
O King Features empregou o assistente de Segar, Bud Sagendorf, para cuidar do personagem, o que ele fez com muita competência. O Ota, cartunista, lendário editor do MAD e atual editor do selo Pixel, acha que o Popeye de Sagendorf é até melhor que o de Segar (eu não concordo, registre-se).
Em meados dos anos 80, Sagendorf já estava com 71 anos e a fim de se aposentar. O King Features precisava de alguém para substituí-lo. Depois de muita procura, acharam o cara, Bobby London. Era a escolha certa: um cara totalmente errado.
London era um cartunista underground e polêmico, colaborador da “Playboy” e da “National Lampoon” (uma das melhores revistas de humor da história americana). Mas muitas coisas contavam a seu favor. Ele tinha enorme carinho pelo personagem, era fã dos cartunistas clássicos e amigo de Sagendorf. Além disso, Popeye já estava em cena desde 1929 e certa dose de ousadia seria bem vinda. Certa dose.
London assumiu Popeye em fevereiro de 1986. Começou devagar, evitando histórias longas e fazendo piadas autocontidas de três quadrinhos. O trivial. Mas já no ano seguinte, ele decidiu fazer “sagas”, como as que E.C. Segar fazia, e a coisa ficou bem mais interessante. Bobby London investiu contra a especulação imobiliária, a vida corporativa, os marqueteiros, os ditadores, os conflitos no Oriente Médio e a MTV (era uma coisa importante na época).
Numa das histórias mais inspiradas, o ditador do Bananastan, um país do Oriente Médio, descobre que é dono de todo o petróleo do mundo, exceto da família Oyl (Olívia Palito é Olive Oyl no original). Ele sequestra Olívia e Popeye, claro, vai em busca na namorada. Mas para salvá-la, tem que enfrentar a CIA (que tem negócios escusos com o ditador) e protestos nos Estados Unidos, que começa a campanha “No blood for Oyl!”.
É claro que a brincadeira não podia durar muito.
O King Features começou a pressionar London para mudar o tom da tira. Como o cartunista se recusava a obedecer, o “sindicado” enviou “diretrizes” claras: Popeye deveria ter o visual e o tom dos anos 60 e, inclusive, usar o chapéu de marinheiro tradicional que tinha na época. Isso inspirou uma das histórias mais engraçadas de London, “Stupid Little Hat”, que começa com Popeye recebendo uma carta do Departamento de Licenciamento determinando que ele use o tal chapéu e faça piadas mais acessíveis.
O marinheiro passa então a pisar em ancinhos e se pendurar em abismos, enquanto perde o respeito até do seu bebê adotado, Gugu. Como a tira vai ficando, nas palavras de Popeye, “igual a todas as outras”, personagens do Recruta Zero começam a aparecer no meio da história! Desesperado, o marujo caolho troca o chapéu ridículo por uma boina e vira, imediatamente, um intelectual francês pernóstico.
Já era 1992 e o King Features achou que Bobby London merecia um pé na bunda. Antes de sair, no entanto, o cartunista ainda aprontou mais uma. É assim: viciada em teleshopping, Olívia começa a comprar tudo quanto é tranqueira, até adquirir, por um engano, um robô Bebê Brutus, que é uma peste. Popeye convence a namorada a se livrar do bebê, mas a conversa dos dois é ouvida pelo padre da cidade, que pensa que eles estão falando de aborto e inicia uma cruzada contra o casal. Era o que faltava para a demissão sumária de London.
A trajetória de Bobby London à frente de Popeye, que durou de 1986 a 1992, foi reunida agora em dois volumes bem cuidados da editora americana IDW. Foi o meu presente de natal para mim mesmo. Mas também tem um ótimo Popeye em português: “SuperPopeye”, da Pixel, editado pelo Ota, com histórias de Roger Langridge, o atual cartunista do personagem. Langridge não é London e nem Segar, mas é tão bom quanto Sagendorf, talvez até melhor.
Bobby London está do lado certo, do lado dos humoristas que jamais se rendem ao humor a favor ou ao “nada a declarar”. O cartum, afinal, é uma arte subversiva, como os bravos editores do Charlie Hebdo demonstraram.