Por Isabel Lustoza
Tenho na parede de minha sala de trabalho um quadrinho com um Papai Noel suando ao calor dos trópicos; uma setinha indica a Casa de Rui Barbosa e, embaixo vem esse versinho: “Se o mundo inteiro ainda insiste / que existe Papai Noel / que leve o melhor que existe / para a nossa amiga Isabel.” É uma mensagem do Nássara, de quem tive o privilégio de merecer a amizade. Privilégio raro que foi pontuado por visitas que, de vez em quando, me fazia na Casa Rui ou que de vez em quando eu fazia a ele e a D. Iracema, no apartamentinho da Belisário Távora.
Numa das últimas vezes que estive lá, fiquei encantada ao descobrir que aquela música linda que diz assim: “Meu consolo é você, / meu grande amor, eu explico porque / sem você sofro muito, não posso viver, / sem você mais aumenta o meu padecer / tudo fiz sem querer, meu grande amor, / eu peço desculpa a você” é também do Nássara. Ele e D. Iracema cantaram-na para mim, numa dessas tardes memoráveis, tão agradável, tão feliz, que a gente não esquece de jeito nenhum.
Quem me apresentou ao Nássara foi Francisco de Assis Barbosa. Amizade singular esta, ligando o intelectual respeitado, membro da Academia e do Instituto Histórico, a um passado remoto em que Chico Barbosa era repórter de A Noite, onde conheceu o caricaturista Nássara. Depois, os dois foram fisgados pela lábia irresistível de Samuel Wainer para compor a equipe de Diretrizes. Enquanto o boêmio Nássara ia inventando seus bonecos, fazendo as célebres marchinhas (“Formosa”, “Florisbela”, “O homem quem será?” e muitas outras), mais ligado ao estilo do Luís Peixoto que ao dos intelectuais “sérios”, o Chico formava no time destes últimos.
Ao rever essas entrevistas, recheadas de histórias pitorescas, deliciosas, narradas com espírito, que o Nássara ia desfiando assim, para deleite seu e nosso, intercaladas com as canções que cantava em voz de timbre seguro, nos ritmos mais variados, a gente entende porque Nássara permanecia, apesar da idade, apesar da audição meio sobre a de Beethoven, uma companhia adorável, um papo admirável. Aliás, sobre a própria surdez, dizia estar bem acompanhado e citava outro surdo famoso, o caricaturista Raul Pederneiras: Ouço a voz da consciência e não preciso ouvir mais nada.
Nássara, desde cedo manifestou talentos os mais variados. Nele, os dons eram tão gratuitos – o talento de caricaturista e de compositor inspirador – que, talvez por isso mesmo nem e desse conta de sua importância: Nunca procurei, ou melhor, as coisas vieram ao meu encontro. De fato, o responsável por tanto talento e tanto sucesso era o seu fenomenal anjo da guarda. Legenda que os amigos gostavam de anunciar. Paulo Mendes Campos dizia que com o Nássara acontecem coisas que não acontecem ao Botafogo: em Nova York, foi pedir informações a um guarda e este era brasileiro.
Falando de pessoas talentosas, citou, certa vez, uma frase que atribuiu a Victor Hugo. Teriam perguntando a ele se era fácil fazer um soneto como os que ele fazia. Hugo teria dito que era fácil ou era impossível. Ou o cara faz ou não faz. De fato, para o homem de talento a coisa brota assim espontânea. E aí, o verso mais genial, o quadro mais inspirado, vem fácil, nasce da alma do artista. Para quem tem talento é fazer Formosa, marcando o ritmo na caixa de fósforos. Para os que não têm nem todas as orquestras do mundo ajudam.
Era tremendamente simples, acessível. Não fazia gênero de artista, de quem se via como um medalhão. E até que podia. Alguém que fez músicas como Periquitinho verde e Alá-la-ô, clássicos de nosso repertório popular, músicas que tocam todo o santo carnaval, bem que já merecia ter figurando em alguma Academia ou em outro cenáculo qualquer de luminares da cultura nacional. Estas coisas nem passavam pela cabeça do Nássara. Como disse o Millôr, para o Nássara, a glória não passava de um outeiro.