Boemia

Carnaval é oposição. O resto é tuite pornográfico e santo de camisa amarela

Postado por Simão Pessoa

Por Luiz Fernando Vianna

Santo, para ser respeitado em escola de samba, tem que entrar com espada em punho e dragão morto no currículo. Vir com denuncismo ou romantismo para falar da vitória da Mangueira faz pouco sentido.

É contraditório uma escola cujo presidente foi detido sob suspeita de corrupção ter um enredo radicalmente de esquerda? Pode ser, mas o que seria coerente: levar para a avenida uma ode à corrupção? Seria esta, a corrupção, patrimônio (com trocadilho) da direita? Ou caberia exaltar o comércio de drogas, pois há quem diga que existem camarote e entrada reservada para traficantes na quadra da escola?

Em primeiro lugar, o presidente afastado é Chiquinho da Mangueira. Não significa que seja a Mangueira do Chiquinho. A Estação Primeira tem 90 anos; o deputado estadual afastado, 64.

Em segundo, carnaval é oposição. O resto é arrumação de confetes e serpentinas. Jair Bolsonaro mal entrou no terceiro mês de governo e foi ironizado ou hostilizado em quase todo o país ao longo de quatro dias. É do jogo democrático. Responder com imagens de fio-terra e golden shower não é.

Se presidentes de esquerda foram menos atacados no passado, é porque eram de esquerda. Além da longa prática em ser oposição, esse lado do espectro político carrega, historicamente, as bandeiras das minorias, da diversidade, das fantasias sociais e carnavalescas. Até roubam os amigos, mas não perdem as piadas. Quando perdem, caso dos militantes furibundos, ficam sem graça nenhuma.

No Brasil recente, a direita fez oposição vestindo camisa amarela – e da CBF, entidade em que santos não entram e que também tem corruptos na cadeia, ainda que nos Estados Unidos, caso de José Maria Marin.

Os românticos tendem a idealizar o passado das escolas de samba como um tempo de paz e harmonia. Nas favelas onde a maioria delas nasceu não havia luz nem saneamento básico. Havia miséria e desemprego. As escolas foram uma experiência civilizatória de representação daquelas populações marginalizadas, produzindo força coletiva para dialogar com os poderosos.

As vitórias conquistadas não aconteceram sem luta, embora com armas de boa diplomacia – não existiam blogs, WhatsApp nem Twitter. Paulo da Portela e Cartola foram líderes que estudaram pouco, mas eram muito inteligentes e usavam bem as palavras, para compor e conversar. Eram trabalhadores, não eram malandros de usar navalha, mas sabiam dialogar com a turma da pesada. A Portela é isso, a Mangueira é isso, o morro do Salgueiro escapou de ser vendido graças à mobilização coordenada pelo sambista Antenor Gargalhada.

Porém, a Portela foi comandada por décadas pelo bicheiro Natal com mão forte – uma delas só, porque ele não tinha o outro braço. Chico Porrão, fundador da Mangueira, era bicheiro. Na segunda metade do século XX, surgiram contraventores bem pouco românticos, como Capitão Guimarães, Anísio Abrahão David e Luizinho Drummond. Mas isso não apaga o brilho das histórias e vitórias de suas escolas.

Palavra de ex-julgador que não sofreu pressão de ninguém: não existe essa história de resultado ser armado. Se não todos, quase todos os jurados são honestos, procuram fazer o melhor possível. Fabricar a vitória de uma agremiação dependeria de um arranjo matemático quase impossível de ser realizado.

No caso da Mangueira em 2019, ganhou porque foi a melhor. E, também, porque teve o enredo que mais emocionou o público. Quem não rasga placas com o nome de Marielle Franco sabe que as ideias dela ecoam o que parte da população quer dizer e raramente consegue. É a parte que se identifica com um desfile que torna protagonistas os negros, os índios, as mulheres, os pobres, as minorias que são maiorias.

Aos que querem que nossa bandeira jamais seja rosa, vale checar se dá para se identificar com os tuites do presidente. E perceber que carnaval sempre foi, à sua maneira, contestação. Ou, pelo menos, é terreno de algum humor – descontadas aí as aglomerações que acabam em pancadaria, estreladas pela sempre direitista polícia. Melhor vestir uma camisa amarela e se acabar no cordão com reco-reco na mão, tal como no samba de Ary Barroso.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

Leave a Comment