Memória Viva

Manaus350: As Icamiabas

Postado por Simão Pessoa

Num lugar que não se sabe bem ao certo onde, talvez nas planícies frias da margem esquerda do rio Danúbio, no coração da Europa, viveram, numa época que fica entre a mitologia e a história, as mulheres chamadas Amazonas. Eram frias, belas e bárbaras. Não toleravam os homens, a não ser quando os capturavam para se reproduzirem. Amazonas vem de “amazon”, em grego: “as que não têm seio”. Porque, de tão apaixonadas pela guerra, dizem, arrancavam um dos seios para melhor manejar o arco e a lança.

A Grécia mitológica é povoada de histórias dessas mulheres extremadas, descendentes do deus da guerra Ares (Marte, entre os latinos) e da ninfa Harmonia. O incrível herói Hércules esteve nesse reino encantado com a missão de se apoderar do cinto de Hipólita, a rainha. Quase teve êxito. Hipólita apaixonou-se por ele e lhe daria de boa vontade o cinto, não fosse suas guerreiras terem iniciado uma rebelião, fomentada, aliás, pela deusa Hera, uma ciumenta amiga de Hércules. O prodigioso Hércules mata Hipólita, para conseguir o cinto, e retira-se combatendo furiosamente. Pelo menos assim é a lenda.

Em 1539, as Américas estavam ainda mal descobertas. E o mito das Amazonas não era muito mais fantástico que as terras para onde se dirigiam aventureiros como Don Francisco de Orellana, que vinha à misteriosa América, como disse um de seus poetas, realizar “um sueño heroico y brutal”. Orellana era um dos comandantes de Francisco Pizarro, o sombrio e inclemente conquistador do Peru. Este ouvira falar do Eldorado, um país fantástico de cidades de ouro, além dos Andes. E para lá, numa tropa com 4 mil índios escravos, 300 soldados, 150 cavalos, cães e porcos, despachou, no Natal de 1539, alguns de seus homens – entre os quais Orellana – sob o comando de seu irmão Gonzalo.

A viagem deste segundo Pizarro foi um roteiro de misérias. A escalada dos Andes custou à expedição mais do que o pior dos combates. Tiveram de comer frutos desconhecidos e raízes, solas de sapatos e arreios. Já na encosta leste dos Andes, o segundo Pizarro para e manda cinquenta homens em busca de alimentos. No comando envia Orellana, do qual esperaria socorro em vão: o cavalheiro foge para a imortalidade. Vai descobrir o rio das Amazonas.

Do rio Coca, onde estava Gonzalo Pizarro, Francisco Orellana chegou ao rio Napo. Após uma jornada de 600 quilômetros pelo rio Napo, sob a ameaça constante dos índios omáguas, ele atingiu um caudal barrento que chamou de rio Orellana. E o seguiu, abandonando Gonzalo à sua própria sorte. O rio barrento era o Solimões, cujo nome é uma referência aos nomes dos povos que originalmente habitavam suas margens, os índios Sorimões (ou ainda Joriman ou Sorimão), termo derivado da palavra latina solimum, referência ao veneno utilizado nas pontas de flechas e dardos destes povos.

Os navegantes seguiram pelo rio Solimões por mais 1.200 quilômetros até a sua confluência com o rio Negro, que alcançaram no dia 3 de junho de 1542. O rio nascido daquele “encontro das águas” foi designado pelos membros da expedição como Grande Río, Mar Dulce e Río de la Canela. Orellana alegou ter encontrado em suas margens grandes caneleiras, árvores das quais se obtem a canela, uma das especiarias mais importantes e desejadas na Europa da época. A árvore, no entanto, não é nativa da América do Sul e só podia ser encontrada, à época, no Oriente. Outras plantas semelhantes, no entanto, como o loureiro e o pau-rosa, são nativas da região, e Orellana poderia estar se referindo a elas.

Depois de muito viajar, numa segunda-feira, conta frei Gaspar Carvajal, cronista da viagem, Orellana e seus homens chegaram a um povoado indígena, em cuja praça se erguia um palanque representando uma cidade murada. Perguntando aos índios, “por cual memoria tenían aquello”, responderam que os habitantes da aldeia eram servidores das “icamiabas” (na língua dos índios, “mulheres sem marido”). Diz frei Carvajal que um índio prisioneiro informou serem elas todas solteiras. Moravam sete dias rio Nhamundá acima, em setenta povoados, com muralhas que se comunicavam por estradas bem guardadas.

Diz Carvajal: “El Capitán (Orellana), le preguntó sí estas mujeres parían; el indio dijo que si. El capitán le dijo que, como, no siendo casadas, ni reside hombre entre ellas, se empreñaban. Él dijo que estas indias participan com indios em tiempos, y quando les viene aquela gana (…) por fuerza los traen a sus tierras y los tienem consigo aquele tiempo que se les antoja, y después que las hayan preñadas les tornam a enviar a sua tierra (…); y después, cuando vienne el tiempo que han de parir, que si paren hijo le matan y le envian a sus padres, y si hija la crían com muy gran solemnidade”.

Descendo mais, na foz do rio Nhamundá, Orellana teria travado feroz encontro com essas guerreiras. Não tinha jeito ruim a batalha naquele dia 24 de junho, dia de São João. Dos bergantins, os homens de Francisco Orellana estavam esvaziando de inimigos, com rajadas de arcabuz e de balestra, as brancas canoas vindas da costa. Mas aí, a bruxa deu as caras. Apareceram as mulheres guerreiras, tão belas e ferozes que eram um escândalo, e então as canoas cobriram o rio e os navios saíram correndo, rio acima, como porco-espinhos assustados, eriçados de flechas de proa a popa e até no mastro-mor.

As capitãs lutaram rindo. Se puseram à frente dos homens, fêmeas garbosas, e já não houve medo na aldeia de Conlapayara. Lutaram rindo e dançando e cantando, as tetas vibrantes no ar, até que os espanhóis se perderam para lá da boca do rio Tapajós, exaustos de tanto esforço e assombro. Tinham ouvido falar destas mulheres, e agora acreditam. Elas vivem ao sul, em senhorios sem homens, onde afogam os filhos que nascem varões. Quando o corpo pede, dão guerra às tribos da costa e conseguem prisioneiros. Os devolvem na manhã seguinte. Ao cabo de uma noite de amor, o que chegou rapaz regressa velho.

Orellana e seus soldados continuarão percorrendo o rio mais caudaloso do mundo e sairão ao mar sem piloto, nem bússola, nem carta de navegação. Viajam nos bergantins que eles construíram ou inventaram a golpes de machado, em plena selva, fazendo pregos e bisagras com as ferraduras dos cavalos mortos e soprando o carvão com botinas convertidas em foles. Deixam-se ir sem rumo pelo rio das Amazonas, costeando a selva, sem energias para o remo, e vão murmurando orações: rogam a Deus que sejam machos, por mais machos que possam ser, os próximos inimigos.

A história ou o mito maravilhoso das icamiabas dominou o resto da viagem. Orellana rebatizou o grande rio: de rios das Canelas passou a chama-lo de rio das Amazonas. Orellana voltou à América, em 1550, como governador-geral do território por ele descoberto. Mas morreu de malária, com 44 anos, na costa da atual Guiana Francesa, depois de dois meses no labirinto de ilhas do arquipélago de Marajó, procurando em vão a entrada do rio das Amazonas.

A Espanha logo esqueceu o infeliz navegante e suas exaltadas descrições. E também a Amazônia. Estava ocupada em assaltar os tesouros dos incas no Peru e de lá era difícil partir para novas aventuras, atrás do problemático Eldorado, escondido e defendido pela imponente cordilheira dos Andes.

Além disso, toda pressa parecia inútil: o mundo já estava dividido. Desde 1494, com o Tratado de Tordesilhas, uma linha que ia de pólo a pólo (passando por onde seriam Belém, no Pará, e Laguna, em Santa Catarina) separava o oriente para Portugal e o ocidente – toda a Amazônia – para a Espanha. Em 1580, os dois grandes imperialismos europeus da época uniram-se sob um rei único, Felipe III, e parecia então haver ainda menos motivos para brigas.

Mas a paz entre lusos e espanhóis iria alimentar outras ambições. Desde os últimos anos do século 16, ingleses, franceses e holandeses tinham começado a explorar as especiarias do vale amazônico, constituindo entrepostos comerciais e mesmo pequenos fortes na saída esquerda do Amazonas.

No dia 12 de janeiro de 1616, em nome do rei de Portugal e Espanha, à foz do rio Pará-açu, “rio grande” na linguagem dos tupinambás, chegam os duzentos portugueses de Francisco Caldeira Castelo Branco, para fundar a Vila de Nossa Senhora de Belém do Grão-Pará e o forte do Presépio. Ainda hoje, as peças de artilharia do forte, rebatizado de Castelo, apontadas para o rio, mostram o objetivo da fundação: defender a Amazônia luso-espanhola dos donos da terra – os índios rebeldes – e dos novos invasores – ingleses, franceses e holandeses. A partir de Belém começa a exploração portuguesa da Amazônia. É uma história sangrenta. E um nome se destaca: Pedro Teixeira.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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