Musicoterapia

E se o jazz não tiver sido uma criação apenas negra?

O baterista Gene Krupa
Postado por Simão Pessoa

Por Ruy Castro

O que os seguintes grandes músicos, quase todos mortos, tinham em comum? (Se você gosta de jazz e é do tempo em que se liam as contracapas dos discos, saberá a resposta logo ao terceiro ou quarto nome.) Bix Beiderbecke, Bud Freeman, Bunny Berigan, Red Norvo, Jack Teagarden, Bobby Hackett, Benny Goodman, Artie Shaw, Billy Butterfield, Eddie Condon, Gene Krupa, Buddy Rich, Dave Tough, Pee Wee Russell, Muggsy Spanier, Jess Stacy, os irmãos Jimmy e Tommy Dorsey, Joe Venuti, Harry James. (E, como a resposta é óbvia, você saberá completer mentalmente muitos outros nomes que poderiam ter entrado nela.) Sim, eram todos grandes músicos de jazz. Brancos.

Um livro recém-lançado, Lost chords, do historiador (e trompetista) Richard M. Sudhalter (Oxford University Press, Nova York, 890 págs.), começa a preencher uma grave lacuna na literatura sobre jazz. É a história da presença dos músicos brancos nessa forma de expressão genericamente considerada como “negra”. Os nomes citados acima são apenas uma amostra do que Sudhalter chama, no subtítulo, de “contribuição”, e se limitam aos músicos surgidos entre 1920 e 1940. A leitura do livro, no entanto, demonstra que os músicos brancos não se limitaram a “contribuir” – foram importantes para a própria fundação do jazz. Mas, por vários motivos, tudo que fizeram foi relegado a notas de pé de página na historiografia. São esses “acordes perdidos” que Sudhalter traz de novo à pauta.

Sudhalter não é um revisionista gratuito que, de repente, resolveu virar de cabeça para baixo a história do jazz tentando provar que os brancos foram mais importantes do que os negros. Nada disso. Seu amor e admiração por Louis Armstrong, Duke Ellington, Sidney Bechet, Coleman Hawkins ou Fletcher Henderson – alguns dos negros ultrafundadores – é tão grande quanto o seu ou o meu, o que está explícito no número de vezes em que eles são citados no índice de nomes. Seu livro quer apenas colocar o peso que faltava no outro prato da balança. Um prato deixado vazio há décadas, pelo racismo ao contrário exercido pelos críticos e historiadores do jazz – para os quais, se o jazz fosse um clube, os músicos brancos só poderiam entrar pelos fundos e não teriam permissão para se sentar com os negros.

Você argumentará que, pior do que o racismo ao contrário que condenou os músicos brancos ao segundo time em termos de prestígio, foi o racismo de verdade que condenou os músicos negros aos piores empregos, aos hotéis no gueto e à pobreza em geral. Sudhalter (por sinal, branco) não ignora isso e relata que a vida para os músicos de Duke Ellington, Cab Calloway ou Count Basie (embora não tão desesperadora como se costuma fazer crer) não era, de fato, tão confortável quanto a dos músicos de Benny Goodman, Artie Shaw ou Tommy Dorsey. Mas isso tinha mais a ver com a doença da sociedade americana do que com o jazz em si. Já o racismo ao contrário é uma doença específica do jazz.

Porque, se dependesse dos músicos, os brancos e os negros teriam se misturado muito mais cedo. Os músicos, como um grupo, nunca foram racistas: imagine se o branco Gene Krupa, cheio de saúde, não morria de inveja do negro Chick Webb, que, com tuberculose óssea e tudo, tocava mais bateria do que ele. Ou se Louis Armstrong, negro, não admirava seu colega de trompete Bunny Berigan, branco, como declarou várias vezes. Mas, em fins dos anos 30, dois ou três influentes críticos de jazz (brancos e, não por acaso, franceses) lançaram as sementes de um separatismo racial que encontrou fértil terreno nos Estados Unidos para germinar. A época era especialmente favorável: a da luta contra a “superioridade racial” nazista. A “pureza” negra do jazz era uma forma de luta politicamente correta avant la lettre. Por ironia, criou-se um apartheid com sinal trocado, no qual os músicos brancos foram as vítimas. Um apartheid do qual todos temos sido cúmplices.

Não duvide. Você próprio, ao ler a lista acima, se sentiu tentando a citar três ou quatro músicos negros como “superiores” a cada um dos vinte brancos mencionados. Por exemplo: o sax-tenor Bud Freeman. Bud podia ser o.k., dirá você, mas por que perder tempo com ele quando se pode ouvir Coleman Hawkins, Ben Webster ou Lester Yung? A idéia, meticulosamente inoculada em cada um de nós, foi a de que os músicos brancos nunca inventaram nada, eram reles copiadores dos negros e, o que é pior, bateram-lhes a carteira – porque lhes roubaram a música, lucraram com ela e não deixaram que seus verdadeiros criadores pudessem beneficiar-se dela.

Exemplo históricos que pareciam confirmar essa ideia nunca faltaram. Um deles era o do que o primeiro disco “de jazz” em todos os tempos (gravado no dia 26 de fevereiro de 1917) coube a uma banda branca, a ODJB (Original Dixieland Jazz Band), e não a uma banda negra de New Orleans. Poucos anos depois, o cognome de “rei do jazz” seria aplicado ao band-leader branco Paul Whiteman, cuja orquestra-mamute nada tinha a ver com jazz. E, em mais alguns anos, Benny Goodman ficaria rico tocando os mesmos arranjos que haviam mantido Fletcher Henderson pobre. Estas são “verdades” estabelecidas do jazz. Mas, e se não foi bem assim? Tais exemplos apenas enfatizavam maldosamente a cor da pele, omitindo de propósito informações que talvez pudessem alterar o quadro.

Vejamos a ODJB. Ela tinha tanto direito a gravar jazz em 1917 quanto qualquer banda negra de New Orleans. Seus cinco integrantes também eram de New Orleans, tão oriundos do ragtime quanto seus colegas negros e, assim como estes, sofriam com as batidas da polícia nos bordéis em que tocavam. Os maldosos omitem também que a Victor, desde 1916, convidara bandas negras (entre as quais a Creole Jazz Band, do legendário trompetista Freddie Keppard) para fazer esse disco – e elas recusaram, sob a alegação de que, se gravassem sua música, todo mundo aprenderia a copiá-la. A ODJB foi a escolhida porque era tão boa quanto as outras e porque, no começo de 1917, estava se apresentando e estourando em Nova York. O irônico é que, em seguida, vários líderes negros, entre os quais King Oliver (mentor de Louis Armstrong), iriam adaptar suas bandas ao quinteto básico definido pela ODJB: trompete, clarineta, trombone-baixo (este substituindo a tuba), piano e bateria.

Quanto a Paul Whiteman, o título de “rei do jazz” foi apenas uma ideia de um marqueteiro da época, e Whiteman jamais gostou disso. Whiteman podia não ser o rei do jazz, mas também não era o rei do tango. Sua orquestra era quase uma sinfônica, mas comportava inúmeros arranjos com passagens hot, a ser tocadas por jazzistas como Bix Beiderbecke, os irmãos Jimmy e Tommy Dorsey, o saxofonista Frank Trumbauer, o vibrafonista Red Norvo, o violonista Eddie Lang e vários outros que ele tinha sob contrato. Nessa linha jazzístico-sinfônica trabalhavam, na mesma época, outros grandes band-leaders e arranjadores negros, como Don Redman e Horace Henderson e, dez anos depois, o próprio Duke Ellington iria chegar lá. A estes, isso era permitido; a Whiteman, não.

Mas não adianta. Todos nós sempre acreditamos, até inconscientemente, que o único jazz “autêntico” era o tocado pelos músicos negros, e os poucos brancos dignos de nota eram os que haviam sido bons aprendizes daqueles. Uma das razões para isso, segundo Sudhalter, foi a importância atribuída ao blues no jazz. Se o blues é um produto inextricável da cultura negra – e se o jazz é uma extensão do blues – segue-se que o jazz só pode ser negro, não? Assim posto, é perfeito. Mas suponha que o blues não seja uma forma de expressão inata, e sim algo que possa ser “aprendido”. E suponha também que não apenas os músicos brancos tivessem de “aprendê-lo”, mas também muitos músicos negros. Pois foi o que aconteceu com Fats Waller, Art Tatum, Teddy Wilson e Coleman Hawkins, todos citados por Sudhalter com base em declarações dos próprios. Isso não altera tudo?

“O blues foi um ingrediente rico no que veio a se chamar jazz”, escreve Sudhalter. “Mas não foi o único, e nem mesmo indispensável a todos os estilos. Outros ingredientes foram o ragtime, as canções de Tin Pan Alley, a música de concerto europeia de fins do século XIX, a ópera, o vaudeville e os minstrels de ambas as raças, o folclore branco e, talvez mais do que todos, as orquestras ubíquas nos salões e praças de cidades dos Estados Unidos na virada do século XX.” E Sudhalter cita clássicos do jazz sem nenhum vestígio de blues: todos os discos de “stride piano” do Harlem nos anos 20 e a famosa gravação de “Body and soul” por Coleman Hawkins em 1939. Isso os torna menos “jazz”?

A ideia de que o jazz só é válido se tocado pelos negros embra (não é triste?) a mesma “pureza racial” do conde Gobineau. Infelizmente, os jovens negros americanos que a adotaram usaram-na para se sentir orgulhosos de sua herança e manter o olho aberto contra o satã branco. Pois, se tivessem sido ensinados a entender o jazz não como uma experiência negra, mas como uma experiência “americana”, talvez se orgulhassem mais. Seriam herdeiros de uma plêiade de homens (negros e brancos), que inventaram juntos uma música com a qual experimentaram o entendimento, a admiração e o afeto recíprocos.

E, ah, sim, o sax-tenor branco Bud Freeman. O divino Lester Young, negro, confessou-se seu fã – e discípulo.

(Texto publicado no jornal OESP em 24 de abril de 1999 e depois incluído no livro “Tempestade de Ritmos”, da Editora Companhia das Letras)

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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