Por Fernando Vieri
A carreira de Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, segue em plena evolução há pelo menos sete anos, quando ele surgiu para o cenário da música brasileira com a mixtape “Emicídio”, percorrendo um longo caminho até o bem-sucedido “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa” (2015), seu último álbum de estúdio.
O disco nasceu a partir de uma pesquisa intrínseca do artista pelo continente africano e conquistou milhões de pessoas Brasil afora nos últimos meses.
Aos 31 anos de idade, Emicida acaba de fazer a sua quinta turnê pela Europa. Durante a passagem por Lisboa (Portugal), no fim de julho, o rapper encontrou um público ávido por rimas tocantes e ainda “esbarrou” com o Notícias ao Minuto Brasil para uma prosa rápida, mas profunda. A conversa se desenrolou ao som dos bondes elétricos que desciam e subiam os trilhos das ladeiras do charmoso bairro Chiado.
“Eu sou meio local aqui em Lisboa. Saio andando por aí já, tenho meus camaradas… Não sei andar pela cidade toda, mas também não é um lugar onde eu estranho, né? A proximidade da língua faz você se sentir mais possuidor do lugar também, tá ligado? Por exemplo, tem lugares que, embora eu já tenha ido algumas vezes, tipo Köln, na Alemanha, eu não sei circular direito e isso se deve muito por você não conseguir ler as placas aos arredores”, conta Emicida, depois de dizer que frequenta a capital portuguesa desde 2012.
Para o músico, estar em Portugal é manter contato com o “português conservador” tão importante para o trabalho que ele desenvolve. “A matéria prima do que eu faço é a palavra”, diz o rapper, ressaltando em seguida a experiência que teve durante visita aos países africanos de língua portuguesa que serviram como inspiração para o último disco.
“Lá eles falam uma língua portuguesa, mas também um outro tipo de língua portuguesa. Cada região do mundo que fala português, assim como inglês, ou francês, adaptou aquilo à sua regionalidade. Então, passear por Cabo Verde e por Angola me fez ver outros tipos de língua portuguesa. Como eu também vinha com uma frequência a Portugal, me fez ver essa outras nuances do português. Diferente do português que a gente fala no Brasil, e a partir desse monte de língua portuguesa que eu fui encontrando, eu achei que a gente podia intensificar isso, tá ligado? Eu particularmente gosto de uma coisa do português de Portugal porque eu acho que ele é mais conservador com a língua em alguns aspectos, sabe? E nóis já tem uma parada mais fluida. A língua portuguesa do Brasil sofre mutações diariamente”, observou.
A relação de Emicida com a língua lusófona ganhou mais uma nova página em 2017, quando ele finalizou e começou a divulgar o projeto “Língua Franca”, fruto de uma parceria com o também brasileiro Rael e com os rappers portugueses Capicua e Valete. O disco, vale ressaltar, já está disponível nas principais plataformas de streaming.
“Eu fico zoando a Capicua que eu falo que português de Portugal e aqui os cara colocam a sílaba tônica no lugar certo. Com o brasileiro, a sílaba tônica é onde a gente quiser que a sílaba tônica seja. Depende da ênfase da situação, do desespero, tá ligado? Mãe vira “manhê”. E eu acho isso uma parada bonita do brasileiro, porque ele faz com que a língua sempre esteja viva. Ela faz justiça ao que é falado e eu acho que essa é a função da palavra escrita”, diz.
A EVOLUÇÃO DO ARTISTA
Os discos “O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui” (2013) e “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa” (2015) mostram um Emicida mais “calmo” e argumentativo em relação ao rapper que chamou a atenção com as mixtapes “Pra Quem já Mordeu um Cachorro por Comida Até Que Eu Cheguei Longe” (2009) e “Emicídio” (2010). “Eu acho que antes era mais simples, era mais óbvio. Acho que quando a reflexão fica refinada ela consegue alcançar um outro tipo de diálogo, estabelecer uma ponte, sabe?”, conta o músico, que enxerga a música como um diálogo entre ele e o “consumidor”.
“A sensibilidade acaba criando uma ponte entre eu e você, que ela se baseia no diálogo. Isso é a minha intenção em construir uma parada. Eu preciso entender como bater e como conversar. (…) Tipo assim, durante muito tempo eu achei que a base do que eu faço fosse o combate, mas a base do que eu faço é a criação de um espaço onde eu só consigo exercer o meu ser, mano. Eu ser eu, você ser você, as mina serem as mina. É aí que reside a nossa conquista”, contextualizou.
Emicida nos contou que pensou bastante sobre a receptividade do então novo álbum. “Quando eu escutei o disco a primeira vez, eu pensei: caralho, esse Emicida tá fofinho, mano. Nesse último disco eu pensei: mano, os caras vão falar que eu amoleci”, brinca ao relembrar a história e revelar, em seguida, alguns dos motivos que o fez evoluir.
“Durante muito tempo foi isso [mensagem mais direta], só que você vai ficando mais velho, mano, eu virei pai no meio de tudo isso, entende? Eu virei pai, eu virei um empresário, tá ligado? Eu passei a me preocupar com outras questões que eu não me preocupava antes e que todo esse outro lugar onde eu vejo o mundo agora, ele me obriga a ser mais cuidadoso no sentido de, quando eu canto Boa Esperança, é uma série de socos necessários para a realidade, principalmente para o Brasil e para Portugal. Por mais que as pessoas tendem a concordar com o que tá sendo dito, não necessariamente elas conseguem entrar dentro daquela atmosfera, por causa da tensão que ela oferece. E a tensão ela já tá no dia a dia de várias pessoas. Então, muitas vezes, elas procuram a música para um refúgio, tá ligado?”, explica.
“Como eu consigo criar um refúgio, onde ela se sinta respeitada, onde ela se sinta parte, daquilo, sabe? Eu também refleti por esse lado. Foi uma coisa que, viajando pela África, eu pensava muito nisso. As tiazinhas que cantaram o refrão da música “Chapa”, eu não sei se elas colocariam “Boa Esperança” pra escutar e ficariam chapando naquilo. Mas elas conseguem se ver dentro da “Chapa”, porque a saudade é um sentimento recorrente de todos os seres humanos”, contextualiza Emicida, destacando uma das canções de seu último disco.
“Todo mundo tem o que falar de alguém que já se foi, de alguém que você não encontra mais ou de alguém que você nem sabe onde tá mais, tá ligado? Você não sabe se morreu, se casou, enfim. Porque, tipo, eu falo esse bagulho pra minha mulher direto: o bom dos problemas, mano, é que você não precisa procurar, eles te acham. Então a gente não precisa procurar treta, ela vai achar você. Você tem que se concentrar em achar solução e coisa boa, mano. Então eu acho que o diálogo ele oferece isso”, completa.
O TELEFONE CELULAR
Quando esteve em Madagascar trabalhando na criação de “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa”, Emicida disse ter se encantado com o céu visto daquele país localizado na África Oriental. É lindo, disse ele. Diante disso, o questionamos sobre o céu admirado de Lisboa, visto por muitos como encantador.
“A luz da metrópole mata as estrelas. Ela ofusca as estrelas. O foda de Madagascar foi o seguinte: eu fui pra uma ilha do norte, que chama Nosy Be. Quando eu cheguei lá, não tem luz na rua, nos postes. É muito vilarejo. É aldeia, luz natural. Então, quando escurece, escurece. É vaga-lume e estrela, parceiro. Lua iluminando pra caralho e eu sempre fico nessa brisa que quando escurece tudo, sem a luz artificial, a gente enxerga muito. Aí quando eu cheguei, eu fiquei olhando aquele céu, eu pirei, mano, pirei”, lembra, antes de revelar a tentativa frustrada de registrar aquilo tudo que estava sobre ele com a câmera do smartphone.
“Aí fiquei puto, porque eu fiquei tentando tirar foto e não saia. Peguei o celular, peguei a câmera, nenhum dos dois fez justiça e eu falei: puta, quer saber, mano? Esse bagulho não é pra dividir, é pra viver, mano”, recorda.
“O celular virou uma bengala, mano. É louco isso, porque aí você fica concentrado e começa a tocar a sua vida como se ela fosse uma campanha publicitária. ‘Hoje eu preciso mostrar pras pessoas que eu tô comendo um misto quente, um suco de laranja, agora eu tô indo pra academia’. Mano, tem coisa que é só sua, que, sinceramente, não interessa pra ninguém… por causa da questão da imagem, a forma como você é visto é muito importante pra você, a opinião que as pessoas têm de você. As poucas pessoas que conseguem se libertar da opinião dos outros, elas são mais próximas da felicidade do que as que não, justamente porque você consegue fazer o que você quer sem ter que dar satisfação pros outros, tá ligado?”, argumentou.
“Agora existe uma necessidade de existir em grupo, de ser respeitado em grupo, e aí quais são os signos do tempo onde a gente precisa pertencer pra ser entendido como uma pessoa legal, como uma pessoa cool? Eu vou na academia, como comida orgânica, sou vegano, feminista, anti-racista, eu sou a favor do pessoal que tá sofrendo na Síria, fui na academia, Deus no comando, todos esses bagulhos, mano. Enfim, são signos. O ser humano é um bichinho curioso”, finalizou.
LEANDRO, O EMPRESÁRIO
Lá atrás, no passado, quando começou a fazer shows em mais lugares, Emicida levava com ele alguns discos para vender ao público. Dos discos vieram outros produtos, como bonés, acessórios e muito mais. O negócio cresceu e acabou surgindo o Laboratório Fantasma, gravadora, loja e marca que está por trás da obra do músico.
“Eu não planejei ser nenhum dos dois, nem empresário nem artista. A coisa vai acontecendo e você vai lidando com as coisas que se aproximam de você. Tipo assim, eu tinha necessidade de fazer as coisas. Eu sou um fazedor, eu não consigo ficar parado. Eu preciso fazer as coisas acontecerem. Eu acredito que dá pra existir uma determinada coisa no mundo, que só tem dentro da minha cabeça, eu vou correr atrás até aquilo se tornar físico. Se no caminho disso eu me torno um empresário ou um artista, são consequências. Eu vejo isso como consequências do ato de fazer. É que as pessoas precisam organizar isso em palavras”, comentou.
PROJETOS FUTUROS
Música? Perguntado sobre seus próximos projetos, Emicida surpreendeu ao dizer que histórias em quadrinhos estavam loucas para sair da cabeça dele para o papel.
“Ah, mano, eu quero fazer história em quadrinhos. Meu sonho mesmo era ser desenhista de história em quadrinhos, tá ligado? Essa era a parada. Esse bagulho de rap aí pintou no meio do caminho. Eu gosto de música. O rap veio parar em mim. Eu tava no meio da parada e ok, mas era só um fã. Ok, tenho aptidão pra fazer isso, reconheço que faço isso de uma forma bacana, melhor que algumas pessoas, porém eu tenho um sonho antigo de fazer história em quadrinhos”, revelou.
“Cada uma das coisas são como uma folha em branco, aí você vai e descarrega ali a sua visão de mundo para levar uma história até as pessoas, por isso que minha matéria prima é a palavra. Porque a partir da palavra é que eu estabeleço essa comunicação. Mas ela não é a única. A prova disso é essa outra circulação que a gente faz que as pessoas não compreendem o que agente fala. Até em Portugal, às vezes, as pessoas não compreendem o que a gente fala porque tem gíria pra caralho.
E O BRASIL?
A conversa terminou com assunto “Brasil”. Diante do caos político, econômico, social e urbano que os brasileiros estão enfrentando, perguntamos ao Emicida como ele estava encarando a atual situação do país.
“O Brasil sempre foi muito louco, né? Talvez a gente esteja vivendo o que os índios viveram há 500 anos. A sensação é essa: estão se apropriando de uma coisa que é nossa e a gente não pode fazer nada”, respondeu, e continuou.
“Tem um ditado árabe, eu adoro ditado, que fala de um fio de palha que pode quebrar as costas de um camelo. Que é o que o Chico Buarque fala quando ele fala que o coração, às vezes, é um pote até aqui de mágoa e mais uma gota ele derrama. Eu acho que esses caras eles estão brincando com fogo. Um país com tanta desigualdade, com tanta miséria, você ficar abusando da paciência do brasileiro… O Brasil é um barril de pólvora. A hora que esse bagulho explodir não vai ter band-aid pra curar o tanto de ferida não. Isso é perigoso. E como diz o Zeca Pagodinho: “quem não escuta cuidado, escuta coitado”.