Musicoterapia

Lapa: reduto dos boêmios e território livre do samba

Postado por Simão Pessoa

“A noite foi feita para o sonho. De dia, a gente tortura-se para pagar as contas. De noite, a gente se delicia a contar as estrelas… O dia é masculino. A noite leva tremenda vantagem porque é feminina”, filosofava Lamartine Babo. “Lapa, minha Lapa querida, / Miguelzinho Camisa Preta, Meia-Noite e Edgard… / Lapa, minha Lapa boêmia / A lua só vai pra casa / Depois do sol raiar”, cantava Wilson Batista.

A definição de Lamartine Babo e o samba de Wilson Batista descrevem o estado de espírito e o hábitat do boêmio carioca, nos anos 30 e 40, quando o bairro, com casarões antigos já transformados em repúblicas de estudantes, ateliês de artistas (Cândido Portinari tinha o seu na Rua Totônio Regadas), prostíbulos com francesas e “polacas” importadas, rodas de intelectuais em que Manuel Bandeira pontificava, era considerado o Montmartre dos trópicos. O escritor Gastão Cruls chega a pincelar uma comparação (em seu livro “Aparência do Rio de Janeiro”) do Convento de Santa Teresa, com o Sacre Couer, a cavaleiro da colina parisiense, na vigília sobre o verdadeiro Montmartre.

Francesismos à parte, a boemia carioca era tão animada quanto a parisiense. Tudo o que se poderia esperar da noite, da madrugada, estava na Lapa. Música, espetáculos, mulheres, bebidas, restaurantes, a vida a ser vivida como se deve. Artistas e plateia, cantores e cantoras, compositores e músicos, intelectuais e vagabundos, desocupados e trabalhadores, vigaristas e cafetões, prostitutas e vendedoras de flores, traficantes e viciados, isto era a Lapa.

Território demarcado pela boemia que habitava seus cabarés e cafés, frequentada pelos compositores e lugar onde se privilegiava o samba, a Lapa nasceu pacífica e tranquila. Suas primeiras notícias datam de cerca de 1750, momento em que o bairro inicia sua formação no entorno de uma capela construída em louvor de Nossa Senhora, nas cercanias da antiga praia das Areias da Espanha.

Somente no princípio do século passado é que a fama da Lapa como local de boemia começa a se consolidar. O período de glória vai de 1910 a 1940. O apogeu é nos anos 30, anos românticos, tempos em que a região, com velhos prédios e pardieiros, tinha charme próprio, sem beleza, mas bem característico.
Era a Lapa dos cabarés, dos cassinos, das mulheres e das músicas. A figura do malandro que preferia ganhar a vida no macio, bem vestido, sustentado por mulheres ou pelos golpes que aplicava nos “otários”, sempre usando a fina lábia, desprezando a violência.

Os valentões, os “brabos”, preferiam vender proteção aos cabarés, cobrando “estia” todas as noites. Aí, entravam em cena Miguelzinho Camisa Preta, Madame Satã, Meia-Noite, Jorginho, Edgard e até o sobrinho de um ministro de Estado, Joãozinho da Lapa, matador famoso, que acabou (como sempre) fuzilado em uma cobrança.

Os compositores Brancura e Baiaco também faziam parte deste time, mas, sambistas respeitados, preferiam agir pelos lados do Mangue. O Mangue, zona de baixo meretrício, e a Cinelândia formavam com a Lapa o triângulo da boemia, com relevância muito maior para o chamado bairro das quatro letras. Lá, em cabarés como o Apolo, o Brasil Dourado e no primeiro deles, chamado Primor, era fácil encontrar Noel Rosa, em uma das mesas. Geraldo Pereira e Cyro Monteiro também eram habitués.

Nelson Gonçalves cantou em muito deles e foi na Lapa que fez fama de valente: sem saber de quem se tratava, deu um cruzado no queixo de Miguelzinho Camisa Preta e o nocauteou. Para manter a reputação, teve que bater em muita gente até sair da Lapa que, como ele mesmo dizia, “era território de malandro, valente ou otário, e eu não me achava nenhuma das três coisas”.

No Casanova e no Novo México, eram comuns as festas em honra de cantores ou compositores. Os gerentes ofereciam a homenagem e a casa, invariavelmente, conseguia um show de graça. Foi assim que Noel compôs o clássico “Dama Do Cabaré”, inspirando-se em Ceci, uma de suas namoradas. O Cabaré Apolo fez para ele uma festa de São João e, em suas mesas, nasceu o famoso samba. Em compensação, foi em outro reduto boêmio do Rio, o Ponto Chic, de Vila Isabel, que Noel compôs “Prazer Em Conhecê-lo”, samba feito após frustrado encontro com Clarinha, outra de suas namoradas.

Wilson Batista (foto) gostava mais da turma da pesada. Vestia-se, elegantemente, como malandro, sem dispensar a navalha, que nunca usou. Com os parceiros mais frequentes, gostava de fazer a ronda noturna, começando pelo Café Nice, onde demorou a chegar, pois, no início, preferia os da Praça Tiradentes, o Café Carlos Gomes (depois, Café Thalia) e a Leiteria Dom Pedro I. Eram locais procurados pelos compositores ainda pouco conhecidos, que depois de famosos se transferiam para a Confeitaria Colombo e para o Café Nice.

Ao lado de Marino Pinto, Benedito Lacerda ou até mesmo Assis Valente, que foi pouco boêmio, apesar de seu samba “Boneca De Pano” (“Gingando / Num cabaré / Poderia ser bonequinha de louça / Mas não é”), Wilson Batista gostava de dar uma passadinha nos taxi-dancings, apenas para ouvir as orquestras excelentes e conferir os crooners cantando seus sambas. Do Avenida ia para o Brasil e o Belas Artes, antes de jantar em restaurantes que nunca fechavam as portas, como o Maranguape e o Sereia.

Em matéria de comer bem, compositores, músicos e cantores jamais puderam reclamar. Nos baixos do Teatro Municipal funcionava o Assírio, com sua decoração peculiar. O Reis era conhecido pela generosidade de seus churrascos e o Capela alimentou gerações de boêmios. Sem contar as famosas leiterias, sempre de plantão, a Bol, a Dom Pedro I e a Nevada.

Nas mesas das leiterias, a boemia era mais literária que musical. Além dos artistas plásticos e poetas moradores da região, era comum a frequência de políticos e intelectuais, a confirmar os ares de Montmartre que a Lapa insistia em manter. O revolucionário Agildo Barata, os escritores Jorge Amado e San Tiago Dantas, os pintores Cândido Portinari e Emiliano Di Cavalcanti, o maestro Heitor Villa-Lobos, os jornalistas Rubem Braga e Prudentinho de Moraes, o poeta Manuel Bandeira e o escritor Mário de Andrade eram, habitualmente, vistos nas leiterias em tertúlias movidas a álcool, jamais regadas a leite.

Na porta do Café Indígena, o letrista Jorge Faraj, em companhia de outros compositores, entre eles Wilson Batista, chamou a atenção para a falta de uma torre na velha igreja da Lapa, surgindo a versão (depois desmentida pelo historiador Luiz Edmundo) de que a mesma fora derrubada por um tiro de canhão durante a Revolta da Esquadra. Foi o bastante para (como tudo na Lapa) inspirar mais um samba e Wilson fez a segunda parte do samba que epigrafa este texto: “Falta uma torre na igreja / Vou lhe contar meu irmão / Foi no tempo de Floriano / Foi um tiro de canhão / Naquele dia o nome da Lapa / Encheu-se de glória / Deixou seu nome na história”.

Enquanto o Túnel Novo não ligou a Zona Sul ao centro do Rio de Janeiro, a Lapa reinou absoluta na boêmia. Copacabana, Ipanema e Leblon eram apostas para o futuro. E, enquanto o futuro não chegava, a elegância de Custódio Mesquita passeava nas noites da Lapa, fazendo sambas maravilhosos em parceria com Mário Lago, de preferência no Café Suisso, onde se comiam as melhores empadas da cidade.

Sílvio Caldas esperava Orestes Barbosa terminar seu expediente na redação dos jornais e desses encontros nasciam joias, das quais “Chão De Estrelas” pode ser o maior exemplo. Como compositor, Sílvio sempre teve no poeta Orestes o seu melhor parceiro. Francisco Alves garimpava seu repertório em diversos cafés, mas só depois de assinar o ponto no Café Nice.

É conhecida a história de sua chegada ao Café da Uma Hora, no Largo do Maracanã, e encontrar Noel Rosa e Cartola, que pediram “um vale”, pois estavam completamente sem dinheiro e matando cachorro a grito. Aproveitando-se da situação, o cantor comprou dois sambas inéditos da dupla por cem-mil réis. Detalhe: exigiu que os sambas (“Qual Foi O Mal Que Te Fiz” e “Estamos Esperando”) fossem criados na hora. Foi atendido.

Compor na madrugada não era problema para Noel Rosa, que, aliás, não era muito de frequentar o Café Nice. Preferia as mesas do Trianon, localizado nas imediações e menos badalado. Foi lá que uma desesperada Aracy de Almeida conseguiu encontrá-lo no meio da noite. Ela tinha combinado de cantar um samba dele no filme “Alô Alô Carnaval” e, até a véspera, a música não aparecera. Na maior tranquilidade do mundo, Noel mandou Aracy sentar, pediu lápis e um guardanapo de papel de um garçom e, quase na mesma hora, compôs nada menos que o samba “Palpite Infeliz”.

Em outra oportunidade, com horário de gravação marcado na RCA Victor para o dia seguinte, Aracy apareceu no Trianon à procura do compositor. Ele pediu que ela voltasse às três horas da madrugada. Quando chegou, a letra de “O Xis Do Problema” estava rabiscada no papel de um maço de cigarros Odalisca. Em seguida, ele fez a música.

Grandes poetas e grandes músicos foram boêmios. Excepcionais obras de arte musical nasceram na boemia. Nelson Gonçalves a definiu com a sabedoria de quem conhecia o assunto em profundidade: “O boêmio – e eu ainda sou um deles – é o homem capaz de sentir toda a beleza e os mistérios da noite, ver estrelas, chorar e cantar pela mulher amada que o deixou ou não. Entender de poesia, respeitar os romances que acontecem na madrugada, saudar o pôr e o nascer do sol. Quem não viu uma cena de ciúme na madrugada não é boêmio.”

Boemia, portanto, é estilo de vida, quase profissão e condição necessária para aqueles que se dedicaram a compor ou a cantar os sambas que enterneceram os corações. Ser boêmio é ser acima de tudo humano, compreensivo, amigo e, como amigo, saber perdoar. Como no caso do samba “Louco”, parceria de Wilson Batista e Henrique Almeida.

O samba fora inscrito no concurso de Carnaval da Rádio Clube e Henrique, que trabalhara muito divulgando ele, teve que viajar para uma temporada na Argentina, antes do resultado. Deixou a esposa grávida de oito meses e pediu a Aracy Almeida, intérprete da composição, que, em caso de vitória, sua parte do prêmio fosse entregue à mulher dele. O samba venceu, Aracy pediu a ela que procurasse Wilson. Este disse que o parceiro o encontrasse na volta da viagem.

Tão logo chegou, Henrique partiu em busca de Wilson, que sumiu no trecho. Até que um dia, encurralado no Café Nice, confessou que recebera o dinheiro, gastara e, quando pudesse, pagaria. Henrique ouviu calmamente e, ao final da conversa, abriu uma navalha e partiu pra cima do parceiro, que fugiu pulando as mesas, desaparecendo pela Galeria Cruzeiro. Tempos depois, amigos de ambos intercederam, a amizade dos dois foi reatada e a dívida paga em módicas prestações.

Como na letra do poeta, enquanto houver um boêmio, haverá samba. E quem quiser que conte outra.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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