Boemia

Fraternidade Kayman combina umbanda e santo-daime

Postado por Simão Pessoa

Por Daniel Camargos

Jesus Cristo, Oxalá, São Jorge, Ogum, São Sebastião, Oxossi, Nossa Senhora da Conceição, Oxum, São Jerônimo e Xangô; Krishna, Ganesha e Shiva; Curupira, caboclos, águia, golfinho, lobo, boto, sacis e demais seres encantados da floresta ladeiam outras imagens nos vários altares do Centro Espiritualista Fraternidade Kayman, onde ocorrem os rituais de umbandaime – uma união da umbanda, de inspiração africana, e do santo-daime, manifestação religiosa de origem amazônica – em Belo Horizonte.

As grutas são iluminadas em diferentes cores, em harmonia com o teto densamente enfeitado por pequenas bandeiras multicoloridas. Quem observa pela primeira vez o espaço – em um terreno de 1.200 metros quadrados no Bairro Ipiranga, Nordeste de Belo Horizonte, distante apenas 5,2 quilômetros da Praça Sete – pisca algumas vezes para ajustar a visão a vários matizes. Se é noite de quinta-feira, é preciso focar mais do que as vistas.

As mais de 200 pessoas que vão à fraternidade todas as semanas para as cerimônias do umbandaime entram em sintonia ao ritmo dos atabaques, assistem aos médiuns incorporarem entidades e recebem passes. Quem deseja, toma o chá da ayahuasca, bebida elaborada com a mistura do cipó jagube (Banisteriopsis caapi) com a folha rainha (Psychotria viridis), base do santo-daime. Há quem considere a beberagem um alucinógeno. O termo é repudiado pelos fiéis, que preferem a palavra enteógeno, pois abrange a ideia de ligação religiosa.

A Fraternidade Kayman foi fundada há quase 13 anos por Robespierry Caetano, médium e pai de santo, que incorpora Pai João de Aruanda, um preto velho. Pierry, como é conhecido, ficou famoso em 1992, por ter vislumbrado – segundo ele, por contato espiritual – a localização de parte dos destroços do helicóptero que matou o político Ulysses Guimarães. Após ganhar notoriedade, ele viajou por todos os estados brasileiros por sete anos, realizando cirurgias espirituais. De acordo com seus cálculos, fez mais de 1 milhão de operações, usando como instrumento mais complexo uma prosaica faca de cozinha.

Nascido em uma fazenda em Ouro Verde de Goiás, Pierry escolheu Belo Horizonte para viver desde o ano 2000. Decidiu abrir a Fraternidade após ter uma miração (termo usado entre os daimistas para definir uma visão estimulada pelo chá) quando tomou a ayahuasca pela primeira vez. “Eu pude ver que religião significa religar. Unir todas as linhas de pensamento e força. Em nome do amor. Em nome da paz. Em nome do bem. Eu via que todas as religiões eram boas para mim”, descreve Pierry. Foi com a autorização dele que a equipe de reportagem do Estado de Minas acompanhou uma cerimônia de umbandaime e uma do santo-daime.

A cerimônia do umbandaime é chamada de desenvolvimento mediúnico e começa por volta de 19h30, sempre às quintas-feiras. Quem deseja beber a ayahuasca precisa preencher uma ficha. Entre os questionamentos estão perguntas sobre eventual uso de algum medicamento ou droga. Após o preenchimento, é feita uma entrevista com Pierry. Se o novo participante é liberado, paga R$ 30. Quem não deseja beber o chá pode participar sem pagar nada. Outra condição para tomar a infusão é permanecer no local até o fim da cerimônia, que dura cerca de quatro horas.

Na quinta-feira em que o jornal Estado de Minas acompanhou os ritos, ocorreu uma Gira de Incorporação. Gira é a designação da sessão religiosa de umbanda; incorporação significa que entidades serão incorporadas pelos médiuns, que afirmam receber espíritos de caboclos, pretos velhos, crianças e demais entidades, guiados pela batida dos atabaques, por músicas e hinos, os pontos de Umbanda.

A cerimônia começa com Pierry, já incorporado como Pai João de Aruanda, rezando um pai nosso e uma ave-maria. Com a voz alterada, remetendo a um senhor bem mais velho que os 44 anos que tem, o fundador convoca todos a repetir: “Eu sou feliz! Eu sou feliz porque eu sou filho de Deus. Eu sou feliz porque eu sou eu”. Todos entoam as frases em uníssono.

Às 19h50, é servida a primeira dose de ayahuasca. Enquanto forma-se a fila, Pierry (Pai João) prega: “Tem gente que vem tomar o daime para ficar maluco. O daime é para acabar com a maluquice”. Para beber o chá, os homens devem estar com os pés descalços, vestindo calça e blusa cobrindo os ombros. As mulheres também precisam estar descalças, com saias longas e blusas cobrindo ombros e a barriga.

Com todos em silêncio, é possível escutar o barulho dos copos de vidro vazios de daime tilintando na bandeja. “O daime é para todos, mas nem todos são para o daime”, diz, quebrando o silêncio, Pierry (Pai João). Depois de 10 minutos, começam os preparativos para a gira. Um filho da casa, o defumador, passa por todo o salão defumando o ambiente, enquanto é saudado por uma música. Quando a fumaça se aproxima das pessoas, elas rodopiam e fazem um gestual, com as mãos como se chamassem a fumaça.

As músicas são executadas por um trio de atabaques e um coro de vozes femininas. Todos ajudam ritmando com palmas. Aqueles que manifestam mediunidade começam a incorporar as entidades. Os filhos batizados na casa, que estão sentados nas primeiras cadeiras, são os primeiros a se levantar, e se dirigem ao centro da roda. Dançam, giram e algumas mulheres tampam o rosto com os cabelos compridos jogados para frente. A incorporação, geralmente, é precedida por um tremor intenso, em que os braços do médium balançam tanto que parecem sem controle. Fiéis mais experientes ficam a postos para auxiliar visitantes que manifestem mediunidade e comecem a incorporar.

Ao lado de Pierry, na frente dos altares e alinhado com os músicos, estão dois indígenas da tribo Yawanawá, do Acre: o pajé Tatá Yawanawá, de 102 anos, e o neto dele, Rasu Yawanawá. Além de adotar a umbanda e o santo- daime, a Fraternidade Kayman se vale de ritos indígenas. Rasu e Tatá estavam lá pois participaram de duas pajelanças na Fraternidade, em que também foram usados a ayahuasca e o rumã (rapé).

Às 21h, é servida a segunda dose do daime. Dez cadeiras são dispostas no centro do salão e Pierry (Pai João) dá as instruções para os médiuns incorporarem os pretos velhos. Um senhor acende um grande cachimbo e fica de pé no meio das cadeiras. Pretos velhos e seus cavalos – como os médiuns são chamados – tomam seus lugares.

Os filhos da casa usam roupas totalmente brancas e colares (guias) de contas coloridas. Os que estão na organização da gira convidam, um a um, os presentes a receber atendimento dos médiuns incorporados. Do lado direito do salão, há uma porta para a chamada “sala de cura”. Com cinco macas, uma luz azulada e a parede decorada por vários quadros, incluindo médicos que Pierry relata incorporar. Lá, outros filhos da casa fazem atendimento espiritual enquanto ocorre a gira.

Após uma hora, terminam os atendimentos. Pierry (Pai João) bate o atabaque com força, e os músicos voltam a tocar e a cantar. É a vez de os médiuns incorporarem crianças (erês). São distribuídas balas, doces e pirulitos, e a movimentação no centro da roda se aproxima de um estado de êxtase, com muitas pessoas deitadas e com os pés para cima.

Quase 22h30. As luzes são apagadas, Rasu Yawanawá toca violão e canta uma bela música em seu idioma nativo, por quase 10 minutos. Todos assistem assentados. Na segunda música, com a batida do violão mais sincopada, os filhos da casa voltam a receber entidades e bailar no meio do salão. A cerimônia termina com Pierry (Pai João) rezando um pai-nosso e uma ave-maria.

Do lado de fora da Fraternidade, na rua Pio X, já é sexta-feira. Poucas luzes estão acessas nas janelas dos prédios vizinhos ao local. Os motoristas dos poucos carros que passam em alta velocidade pela Avenida Cristiano Machado dificilmente imaginam a cerimônia que acabou de acontecer a apenas três quarteirões de uma das principais vias da capital.

 

(fonte: jornal Estado de Minas)

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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