JUNHO de 1999. Em uma de suas apresentações no Bumbódromo, o boi Garantido resolveu encenar o Ritual do Kuarup, que é celebrado uma vez ao ano por até nove etnias (kamaiurá, xavante, mehinaku, waurá, etc) dos povos originários que fazem parte do alto Xingu.
O ritual serve para homenagear os mortos. Cada membro falecido é representado por um tronco de madeira, denominado Kuarup, que passa por um longo ritual, antes e durante a cerimônia.
A toada “Kuarup”, escolhida para o ritual do Garantido, se transformou em um dos grandes hits daquele ano:
– Vai começar / A grande festa do Xingu / Todos os guerreiros preparados para o grande ritual / Ecoa na mata o som do Uruá / Flauta sagrada das tribos do Xingu / Toda tribo canta e dança sem parar / Kuarup, ritual Kamayurá / Todos os pajés são convocados / Para a festa do Xingu / E muitas etnias se reúnem / Para o grande ritual / Kuarup é o tronco / Do velho ancestral / Ritual sagrado das tribos do Xingu / Toda tribo canta e dança sem parar / Kuarup, ritual Kamayurá.
Nessa época, o compositor Inaldo Medeiros, irmão do autor da toada, Tony Medeiros, era o xerife dos galpões da Cidade Garantido e mantinha, a ferro e fogo, a ordem e a disciplina no lugar.
Em uma determinada sexta-feira, a diretoria do boi não conseguiu levantar o dinheiro do pagamento semanal dos operários, aderecistas, eletricistas, pintores e demais artesões que se revezavam no QG fazendo as alegorias do bumbá.
A Cidade Garantido ficou em um baixo-astral de dar dó. Todo mundo injuriado.
Na noite de sexta, os diretores do touro branco chamaram o xerife e informaram que ia sair um “vale” pra rapaziada na manhã de sábado. O pessoal foi embora meio ressabiado.
No sábado nova “barrigada” da diretoria, que nem deu as caras no lugar. Para evitar uma rebelião, Inaldo garantiu que o “vale” ia ser pago na manhã de domingo.
Por volta do meio-dia de domingo, Inaldo deu a triste notícia: dinheiro só na semana seguinte. As mais de 200 pessoas, morrendo de fome, começaram a ir embora.

Mestre Gudu como pajé do Garantido nos anos 80
Só quem permaneceu na Cidade Garantido, alheio a tudo e a todos, foi o talentoso artista plástico Fernando Sérgio, o popular Mestre Gudu, considerado um dos artistas mais criativos do pedaço pelo seu brilhante trabalho na confecção dos “capacetes” dos pajés do touro branco.
Instalado na sua baiuca, o artesão não parava de trabalhar.
Uns quinze minutos depois, Gudu, sorrateiramente, saiu de sua baiuca com duas dúzias de bodós em uma panela e se pôs a cortar as verduras a fim de preparar uma caldeirada especial para seus “ajudantes” – cerca de 15 garotões marombeiros, cada um mais “malhado” do que o outro, que haviam permanecido escondidos na cidade-fantasma.
O local escolhido para o banquete dionisíaco foi o bucólico trapiche da Cidade Garantido, banhado pelo Rio Amazonas.
Por volta de 13h30, quando Mestre Gudu começou a servir a caldeirada, calhou de Inaldo Medeiros retornar à Cidade Garantido e, vendo aquilo, pensou tratar-se de uma “boca-livre comunitária”, como as muitas outras que ele próprio ajudava a patrocinar. Pegou logo um prato.
Mestre Gudu olhou de soslaio para ele e, enquanto mexia o caldo de bodó na panela, começou a falar, como se estivesse pensando em voz alta:
– É, parente, é assim mesmo… Pegar um prato, sabe… Na hora de colaborar, some… Quando vem, não traz um cheiro verde, uma pimenta de cheiro, uma verdurinha, uma folhinha pra colocar na panela… Mas quer comer igual uma piranha vermelha morta de fome…
O xerife entendeu a indireta e se encrespou:
– Olha, Gudu, eu tenho dinheiro pra pagar por toda essa merda aqui e ainda sobra grana pra comer o teu rabo e o desses bodós todinhos…
Aí, levantou a pilha de pratos sobre a mesa e começou a quebrá-los, atirando um a um nas paredes de cimento de um dos galpões, como se estivesse participando de um casamento grego.
Depois, pegou a panela fumegante e despejou seu conteúdo no rio.
Mestre Gudu e seus “ajudantes”, claro, fugiram apavorados antes que entrassem na porrada.
Na manhã seguinte, uma paródia da toada “Kuarup” já circulava na cidade:
– Vai começar / O grande almoço do Gudu / Todos os bofes no terreiro preparados para o grande bodozal / Chegou Inaldo e foi tratado mal / Peixe cozido só pros bofes do Gudu / Todo mundo grita e corre sem parar / O brabo do Inaldo vai brigar.
Até hoje o compositor fica injuriado quando escuta a versão apócrifa.
Vítima de complicações decorrentes da diabetes, Mestre Gudu faleceu no hospital Jofre Cohen, em Parintins, em maio de 2022.
Em nota oficial, o prefeito Bi Garcia assim se manifestou: “Recebo com grande tristeza a notícia sobre o falecimento do artista Fernando Sérgio, 67 anos, ocorrido na tarde de hoje em nossa cidade. Carinhosamente conhecido por Gudu, Fernando Sérgio manifestou de diversas maneiras sua paixão pela cultura de nosso município. Seu talento se fez notar na culinária regional, na confecção das indumentárias do Boi Garantido e na devoção ao pastoral São José. Atuou também no esporte local como diretor de futebol em vários clubes. Soube fazer sua história. Sua passagem é de luz! Transmito a todos os familiares, parentes e amigos, nossa solidariedade e orações para que Deus possa confortar o coração de todos.”
Tenho (temos) saudades.