Outubro de 1965. No mês anterior, o ex-diretor da Guarda Rodoviária, Omar Chama, o “Badiba”, havia capotado um carro na estrada da Ponta Negra depois de ter visto uma aparição, no mínimo, estranha: uma mulher nua, andando de bicicleta, no meio da madrugada. Ninguém sabe até hoje se “Badiba” perdeu a direção do carro extasiado pelas curvas da mulher ou se o acidente foi fruto de um acesso inexplicável de pânico. O certo é que a aparição da Lady Godiva manauense era fruto de acaloradas discussões no Café do Pina, uma espécie de Bar do Armando dos anos 60.
Na mesma época, e todos acadêmicos de Direito, Benedito Lyra (que depois foi duas vezes presidente do TRT), Otílio Tino (que também foi presidente do TRT), Valter Caldas (um brilhante advogado e que, durante muitos anos, foi presidente do Atlético Rio Negro Clube), Jorge Rezende (que chegou a ser procurador-geral do Estado) e Abrahim Aleme (que virou jornalista e publicitário de renome, além de, na juventude, ser um tremendo boa-pinta, com seus mortais olhos azul-piscina e sua verve sempre afiada) andavam com outras preocupações mais existencialistas: curar a gagueira crônica de um colega de turma, chamado José Ribamar Afonso, que entraria para a nossa história como o “Delegado do Diabo”. No Café do Pina, eles souberam da história da Lady Godiva e decidiram curar a gagueira do amigo pelo único método tradicional que não tem contraindicação: dando um puta susto no sujeito.
Depois de um paciente trabalho de campo nos principais lupanares da cidade, Abrahim Aleme contratou uma meretriz que fazia ponto no Itamaracá e explicou a brincadeira. Jorge Rezende descolou uma bicicleta e passou uma semana inteira ensinando a vadia a pedalar direito. Benedito Lyra se encarregou de comprar os remédios necessários para uma eventual emergência. No dia acertado para a “aparição”, Valter Caldas roubou o Simca Chambord da família, botou os amigos dentro do carro e foram todos para a Ponta Negra. Sem saber de nada, Ribamar Afonso havia sido contemplado com uma deferência especial e estava aboletado na janela do carona, ao lado do motorista. Os outros quatro estavam no banco traseiro.
A estrada da Ponta Negra, para quem não se lembra mais daqueles tempos, era uma autêntica trilha de rally no meio da selva. Do quartel do 1.º BIS até o Bar Chapéu de Palha, que ficava localizado próximo de onde hoje está o Tropical Hotel, não havia nenhum sinal de civilização. Andar por ali, de madrugada, era um convite certo para ser assediado por curupiras, mapinguaris, matintapereras, visagens, assombrações, caboclinhos, pretos velhos, exus, jumas, iaras, gnomos, duendes, ogros, elfos, óvnis, barangas, dragões e tudo o mais que a imaginação humana (ou o cagaço) pudesse conceber para controlar a adrenalina a mil por hora, que sempre batia em quem se aventurava por aqueles ermos.
Bom, mas depois de tomarem umas cervejas, beliscarem umas iscas e ficarem jogando conversa fora no Chapéu de Palha até por volta de meia-noite, os seis amigos resolveram retornar para a cidade. Quando passavam pela trilha lateral que dava acesso para a Prainha, a vagabunda saiu do meio do mato, completamente pelada, pedalando uma Raleigh de competição, e se posicionou exatamente ao lado de Ribamar Afonso. O diabo é que a mulher era de uma feiura paquidérmica. Perto dela, uma mulher desenhada por Picasso seria atribuída a Rafael. Entre outras coisas, a baranga era magra, desdentada, tinha um rosto asqueroso e dois seios flácidos quase atingindo o meio da cintura. O susto foi tão grande que Ribamar Afonso simplesmente desmaiou. Aí, quem entrou em pânico foi o resto da turma.
Valter Caldas parou o carro, afrouxou o colarinho do amigo e deu-lhe três tapas no rosto, sem saber que isso só funciona em filmes americanos e, assim mesmo, quando a mocinha é muito histérica, o que não era o caso. Ribamar continuou desmaiado. Benedito Lyra sacou um vidro de amoníaco do bolso, embebeu num lenço e aplicou nas narinas do infeliz. Depois de alguns minutos, Ribamar abriu os olhos, mas o amoníaco havia lhe embrulhado o estômago.
A primeira golfada de vômito que deu pegou no rosto de Valter Caldas. Ainda meio tonto por causa do amoníaco, ele virou a cabeça para trás e disparou a metralhadora de gêiser na direção dos ocupantes do banco traseiro. Ao sentir o cheiro nauseabundo do vômito no próprio rosto, Otílio Tino não conseguiu segurar as cervejas e as calabresas que trazia no estômago e despejou em cima de Jorge Rezende.
Foi uma reação em cadeia. Todo mundo vomitou em todo mundo. Em questão de minutos, o odor dentro do carro dava a impressão de que eles estavam transportando chorume de aterro sanitário.
Para consternação geral dos infelizes, assim que conseguiu cair em si, Ribamar disparou:
– Pu-pu-puta q-q-ue pariu! Vo-vo-vocês viram só aque-aque-aquela vi-vi-visagem? Ca-ca-cacete! Eu qua-qua-quase que me cago to-to-todo!
O plano tinha ido por água abaixo. Apesar de todo o esforço da turma, Ribamar estava mais gago do que nunca.
Enquanto limpavam o vômito do carro com as próprias roupas, os cinco amigos discutiam em voz baixa (para que Ribamar não escutasse) onde haviam cometido o erro – e todas as evidências apontavam para Abrahim Aleme.
– Eu acho que o susto não foi tanto pela aparição, mas pela feiura da mulher – explicou Valter Caldas. “Se em vez de pegar uma cabrita do Itamaracá, o Aleme tivesse contratado uma daquelas potrancas do La Hoje, a história seria outra…”.
– O pior não é isso. Já pensou se, além de gago, o Ribamar fosse hipertenso? – questionou Benedito Lira. “Imaginem só a merda que ia dar, a gente chegar com um defunto para entregar pra família dele?…”.
– Eu perdi essa aula, mas se o Ribamar tivesse morrido de susto o Aleme seria indiciado por homicídio doloso ou culposo? – ironizou Jorge Resende.
Cada vez mais cabreiro, Aleme resolveu abrir o jogo:
– Olha, bicho, eu não fiz isso de propósito, não. Vocês sabem que essas meretrizes não fazem nada se não tiver dinheiro na parada. Acontece que eu ando mais “liso” que bunda de tanajura e a Sebastiana foi a única que aceitou participar da brincadeira em troca de uma noite de amor comigo. Porra, fui eu que parti pro sacrifício e não estou reclamando de nada. Vocês deviam era estar me chaleirando, porque se não fosse esses meus olhos azuis a gente ainda estava a ver navios. Pelo menos agora a gente já sabe que o Ribamar não sofre do coração e que essa gagueira dele não é de fundo psicológico…
A confissão do publicitário foi desconcertante. Benedito Lyra, Jorge Rezende, Otílio Tino e Valter Caldas só faltaram se ajoelhar na frente de Aleme e recitar “manitu” três vezes. Afinal de contas, para abater uma “visagem” daquelas e não abotoar o paletó na mesma hora, só mesmo o sujeito tendo o corpo fechado. Que nem o Abrahim Aleme.