O boêmio Albino Pinheiro, que morreu no dia 24 de junho de 1999, no Rio de Janeiro, aos 66 anos (dois anos antes havia sido diagnosticado que ele sofria de câncer na medula óssea), era mais conhecido fora de seu território como o fundador da Banda de Ipanema, que ressuscitou o carnaval carioca de rua e, desde 1965, gerou tantos filhotes pelo Brasil.
Mas todas as tentativas que se fizeram para classificá-lo profissionalmente resultaram incompletas e injustas. Procurador do Estado? Pesquisador do carnaval? Produtor cultural? Boêmio histórico? Estudioso profundo das coisas do Rio? Ele foi cada uma dessas coisas e também a soma delas, mas mesmo esta seria uma redução. A única categoria que o abrangia era a de carioca. Aliás, Albino não se contentaria com nenhuma outra.
O Rio não era apenas a cidade onde ele nasceu e sempre viveu, mas um espaço humano e geográfico a que dedicou cada dia de sua vida. O único carnaval que passou fora da cidade foi o de 1959 e, mesmo assim, porque não teve como se defender.
Na sexta-feira daquele carnaval, o artista plástico Ferdy Carneiro e outros de seus amigos de Ipanema aproveitaram que ele estava ligeiramente ébrio (digamos, inconsciente), enfiaram-no numa caminhonete e pegaram a estrada. Quando acordou, Albino estava em Ubá (MG), terra de Ferdy, a 250 quilômetros da Praça General Osório. Mas nem aquele foi um carnaval perdido. A bandinha local o inspirou, seis anos depois, a fazer a Banda de Ipanema.
A banda pode ser a criação pela qual ele ficou mais conhecido, mas está longe de ter sido a mais importante. O maior mérito de Albino foi o de ter promovido a ligação da zona sul do Rio com a cultura marginal e desprezada dos morros e subúrbios cariocas. Foi levada pela sua mão, em começos dos anos 60, que Ipanema atravessou o túnel rumo ao Centro e à zona norte e penetrou no universo das gafieiras e escolas de samba, que muitos conheciam só de ouvir falar.
É claro que Albino não foi o primeiro a se interessar por esse universo. Antes dele, intelectuais da zona sul como Lúcio Rangel, José Ramos Tinhorão, Sérgio Porto, Édison Carneiro, Eneida e outros já viviam fascinados pelos sons que saíam dos barracos e biroscas. Eram estudiosos sérios, preocupados com a sobrevivência daquela cultura. Mas foi Albino quem tomou providências. Ao promover festas populares, produzir shows, reativar tradições abandonadas e envolver gente de todas as áreas, ele ajudou a quebrar preconceitos raciais, de classe e, principalmente, culturais. Albino foi o grande intermediário prático entre a “alta” e a “baixa” cultura do Rio de Janeiro.
Sua biografia já era a história dessa integração – porque ele nasceu com um pé em cada lado da cidade. A maternidade ficava na Saúde, um bairro da zona portuária, e a casa de sua família na Rua Ipiranga, na ainda aristocrática Laranjeiras. Sua avó era dona de todas as casas da rua, mas estas foram sendo aos poucos transformadas em casas de cômodos, habitadas por biscateiros e profissionais humildes.
O menino Albino estudava no Liceu Francês e frequentava o Fluminense, duas louras instituições de Laranjeiras. Mas ao olhar em torno, descobriu que o que realmente o atraía eram as belas mulatas da rua e as babás de seus sete irmãos. No carnaval, elas saíam atrás dos blocos e ranchos que existiam em Laranjeiras e Albino as seguia, hipnotizado pelo samba. Não por acaso, um de seus tios era o compositor Custódio Mesquita, autor de sambas, valsas e foxes do quilate de “Como Os Rios Que Correm para o Mar”, “Velho Realejo”, “Mulher” e “Nada Além”.
Enquanto a turma de Albino sonhava com Copacabana, o apelo para ele irresistível vinha do centro da cidade. Aos 14 anos, em 1947, já com autonomia de voo, começou a chegar lá. Não pela beira do mar, mas por dentro, pelas pensões suspeitas do Catete, as mesas da Taberna da Glória e, finalmente, as gafieiras da Praça Tiradentes (onde encontrava as empregadas de sua família e as subornava para que não contassem a seu pai). Albino só foi dar às costas de Ipanema em 1950, aos 17 anos, mas já adentrou o bairro pela porta da frente: as domingueiras na casa do escritor Aníbal Machado, levado por amigos de Laranjeiras como a artista plástica Anna Letycia e o futuro cineasta Paulo César Saraceni.
Na casa de Aníbal, Albino experimentou a democrática sensação de conviver com escritores brasileiros e franceses (um deles, Albert Camus), artistas de teatro e cinema, grandes mulheres, jovens da sua idade (amigos de Maria Clara Machado, filha de Aníbal), bebuns comuns e até o chique sambista Heitor dos Prazeres. Passou a ir todos os domingos e a esticar no Zeppelin, o botequim vizinho de Aníbal. Anos depois, já não ia tanto às domingueiras, mas continuou indo ao Zeppelin. Até que, em 1960, se mudou de vez para Ipanema, porque o bairro tinha um encanto de província, como os subúrbios que aprendera a amar. E, na mesma época, começou a estabelecer a ponte que ligaria as duas culturas.
Foi Albino quem transferiu os famosos bailes pré-carnavalescos promovidos pela poetisa Olga Savary e seu marido Jaguar em casas e boates da zona sul para gafieiras como a Estudantina e a Elite. Numa destas, apresentou Nelson Cavaquinho, Zé Kéti e Jair do Cavaquinho a uma plateia que nunca ouvira falar deles. Para Albino, com sua sólida educação em mulatas, sambistas e botequins obscuros, aqueles compositores já eram amigos tão antigos quanto os garçons, choferes de táxi e até estivadores com quem se dava na cidade.
Olga demitiu-se da organização das festas e a batuta passou para Albino, ao lado de Jaguar e Ferdy Carneiro. Dali saíram os réveillons mais animados dos anos 60: os que eles promoviam no Clube Silvestre, em Santa Teresa, com compositores e passistas de escolas de samba e as maiores mulheres do Rio – muitas das quais só Albino sabia onde se escondiam no resto do ano. Nessa época, Vinicius de Moraes queria ser “o branco mais preto do Brasil”. Para Tinhorão, Albino não precisava querer – ele era.
Nas raras vezes nas últimas décadas em que o Rio esteve entregue a gente esclarecida e que amava a cidade, Albino foi chamado a trabalhar como secretário de Turismo ou como encarregado de eventos. A exemplo do que já fizera por conta própria com a Banda de Ipanema, ele sacudiu o carnaval nos anos 70 ao trazer de volta os bailes nas praças dos subúrbios, com orquestras como a Tabajara e a de Raul de Barros, e os banhos de mar à fantasia no Arpoador.
Mas seu gás era para o ano inteiro, promovendo a encenação anual da Paixão de Cristo nos Arcos da Lapa, a revitalização da Festa da Penha, os bailes na Cinelândia e, de 1976 até hoje, o Projeto Seis e Meia, criado por ele: shows com grandes nomes do samba e do choro que, toda noite, na hora do rush, atraem ao Teatro João Caetano milhares de pessoas – muitas das quais nunca tinham entrado num teatro. Foi também um dos criadores do Corredor Cultural, que preservou prédios e monumentos históricos numa enorme área no centro do Rio.
Mas boemia é coisa séria e, durante 50 anos, Albino serviu de conduíte para boa parte do chope produzido no Rio. Bateu recordes em campeonatos de copos no Amarelinho, no Lamas e em todas as mesas da primeira divisão. Aliás, não escolhia campo: na própria rua em que morava, a hoje yuppie Almirante Saddock de Sá, promovia festas na calçada, com cerveja, mesas e cadeiras da Brahma, estreladas pelos seus amigos do samba. A vizinhança nunca reclamou, porque Albino tinha direitos adquiridos: a depender dele, pelo menos aquele cantinho de Ipanema continuaria a parecer-se com um subúrbio. A única coisa que nos ficou devendo, além de sua presença imponente e amiga, foi um livro contando tudo que sabia da história do Rio de Janeiro, fevereiro e março.