Folclore Nativo

A Festa do Boi-Bumbá, em Manaus, em 1859

Postado por Simão Pessoa

O médico Robert Christian Barthold Avé-Lallemant nasceu em Lübeck, Alemanha, em 25 de julho de 1812, e faleceu nessa mesma cidade, em 13 de outubro de 1884. Após estudos em Berlim, Heidelberg e Paris, formou-se em Kiel, em 1837. Veio para o Rio de Janeiro, tornando-se médico-chefe de hospital. Atuou no combate à febre amarela. Retornou à Alemanha em 1855. Dois anos depois retornou ao Brasil, sendo nomeado médico do Hospital dos Estrangeiros. A partir daí, realizou várias viagens ao Sul e ao Norte do Brasil.

Avé-Lallemant foi, antes de tudo, um médico. Entretanto, ele oferece em suas obras os resultados de suas observações e impressões em várias regiões brasileiras. Para a história cultural dessas regiões, os dados que oferece são de grande importância como testemunho ocular de “alguém de fora”. A sua contribuição à história da medicina no Brasil ainda está à espera de estudos mais pormenorizados.

Avé-Lallemant surge como um exemplo de médico com interesses culturais diversificados e assume uma posição histórica nos estudos das relações entre a medicina e os estudos culturais. O próprio Avé-Lallemant salientou, no prefácio de suas edições das viagens pelo Sul e pelo Norte do Brasil, que fazia as suas observações apenas como um “simples médico de hospital”:

“(…) Quase nada tenho a acrescentar ao prefácio, já enviado para a minha Viagem pelo Sul, ao desta Viagem pelo Norte. É a repetição do pedido de indulgência para a narração dum médico de hospital, que nunca teve pretensões ao nome de naturalista, seja zoólogo, botânico ou mineralogista. Contando com a indulgência solicitada, conservei também este texto tal qual o escrevi durante minha viagem, na Bahia, Canavieiras e pelos rios locais, mais tarde em Pernambuco e Maceió, no Pará, em Manaus e Tabatinga, na fronteira peruana, sem alterá-lo, limitando-me, apenas a algumas correções nos apontamentos então escritos. (…)”

As observações de Avé-Lallemant relativas aos índios cristianizados da Amazônia adquirem relevante significado etno-musical e histórico-musicológico. Com a sua obra, contribuiu grandemente para a difusão, na Europa, de conhecimentos das expressões culturais amazônicas de cunho católico.

Segundo ele, os tapuios de Manaus eram fervorosos católicos, fascinados pela riqueza de formas do culto, pela variedade das vestes sacras, pelo incenso e pelos repiques de sinos. Essa religiosidade cristã parecia-lhe misturada com paganismo, o que se manifestaria nos festejos da véspera de São João. A dança de arcos, com cantos e movimentações rítmicas – de resto conhecida em tradições de outras regiões do País e da Europa – poderia ser comparada, segundo Avé-Lallemant, com algumas danças dos Mares do Sul.

De particular interesse para o estudo das tradições culturais da Amazônia é o detalhado relato de Avé-Lallemant a respeito da brincadeira do boi-bumbá, que ele conheceu em Manaus, quando aqui chegou em 1859.

Com a sua pormenorizada descrição, o médico apresentou aos leitores europeus, pela primeira vez, uma imagem bastante expressiva dessa importante manifestação cultural da região, cujo texto original depois foi incluído no seu livro “Viagens no Rio Amazonas”:

“Vi um outro cortejo, logo depois de minha chegada, desta vez em homenagem a S. Pedro e S. Paulo. Chamaram-no bumba.

De longe ouvi de minha janela uma singular cantoria e batuque sincopados. Surgiu no escuro, subindo a rua, uma grande multidão que fez alto diante da casa do Chefe da Polícia, e pareceu organizar-se, sem que em nada pudesse reconhecer. De repente chamas dalguns archotes iluminaram a rua e toda a cena. Duas filas de gente de cor, nos mais variegados trajes de mascarados, mas sem máscaras – porquanto caras fuscas melhores – colocaram-se uma diante da outra, deixando assim um espaço livre. Numa extremidade, em traje índio de festa, o tuxaua, ou chefe, com sua mulher; esta era um rapazola bem proporcionado, porque mulher alguma ou rapariga parecia tomar parte da festa.

Essa senhora tuxaua exibia um belo traje, com uma sainha curta, de diversas cores, e uma bonita coroa de penas. O traje na cabeça e nos quadris duma dançarina atirada teria por certo feito vir abaixo toda uma platéia em Paris ou Berlim. Diante do casal postava-se um feiticeiro, o pajé; defronte dele, na outra extremidade da fila, um boi. Não um boi real, e sim um enorme e leve arcabouço dum boi, de cujos lados pendiam uns panos, tendo na frente dois chifres verdadeiros. Um homem carrega a carcaça na cabeça, e ajuda assim a completar a figura dum boi de grandes dimensões. Enquanto o coro acompanha o compasso do batuque, entoando uma espécie de bocca chiusa monótona, o pajé, o feiticeiro, avança em passo de dança para seu par e canta: “O boi é muito bravo / Precisa amansá-lo”.

O boi não gosta disso e empurra com os chifres seu par, também dançando, para trás, para o lugar do tuxaua. Mas, com a mesma fórmula amansadora, o pajé dança e empurra o boi novamente para trás, e depois este o pajé, e assim durou a singular dança, em meio de toda sorte de voltas e trejeitos de ambos os atores, diante de cuja exibição, mesmo o mais mal-humorado dos solteirões não poderia ficar sério por muito tempo e indiferente ao ritmo do maracá e ao canto dos circunstantes. Por fim, o boi fica manso, quieto, absorto, desanimado, cai por terra, e no mesmo instante tudo silencia. Reina em volta um silêncio de Morte!

Que aconteceu ao boi? Está morrendo ou já morto, o bom boi, que ainda há pouco representava tão bem seu papel? Chamam depressa outro pajé para socorrê-lo; dantes iam mesmo buscar um padre, que devia meter-lhe na boca o santo viático. Isso, porém, é proibido agora, e tem de contentar-se com o pajé. Este começa a cantar diante do boi uma melodia muito sentida que, porém, não mais eficaz, mas em vão; o boi imóvel! E depois de sozinho, nada ter conseguido, toda a companhia ajuda, infelizmente, porém, com o mesmo resultado. O boi está morto.

Irrompeu então, acompanhada de cânticos, uma dança de roda, em saltos regulares e cadenciada, que exigia certamente apurado estudo e ensaios. As mãos na cintura, formando uma longa cadeia, todos os dançarinos dão a um tempo um passo para a frente e outro para trás com o pé direito, fazem então a pausa dum compasso inteiro, e repetem os mesmos movimentos com o pé esquerdo, com graciosos meneios do corpo para o lado que faz os movimentos. Dançam assim em volta do centro, perto dos archotes atirados junto do boi, o que faz com que os variegados vultos animados produzam maravilhosos efeitos de luz.

Cantam particularmente sobre a palavra lavandeira, como pronunciam o vocábulo lavadeira, que lhes dá um lenço limpo, para que possam fartar de chorar, e que provavelmente deverá lavar também o boi. O pajé, porém, canta sempre, nos intervalos, versos aparentemente improvisados, exatamente como num descante vienense, levando nisso muito tempo. E, como, por fim, todos devem estar convencidos da triste realidade da morte do boi, decidem-se, como último grande ato, por uma intimação geral cantada: “(…) chora / O boi já vai-se embora”. Isto é, vai ser enterrado.

E partem cantando e batucando, com seu boi, enquanto este, exatamente como um herói morto de teatro, depois de cair o pano, resolve, por uma louvável consideração, acompanhá-los com os próprios pés, isto é, com os que o tinham trazido; param na primeira esquina, e assim repetidamente, até altas horas, correndo cinco ou seis vezes na mesma noite.

Até onde se vislumbram aí, o espírito e alusão ou reminiscência duma antiga festa na selva, não posso dizer. Para mim também representava, com seus coros e saltos cuidadosamente cadenciados, algo atraente, algo de lídima poesia selvagem. Se o boi parece representar um papel prosaico, então aconselho ir a Paris, pelo carnaval, e procurar lá o boeuf gras, atrás do qual toda Paris corre, sobretudo os Faubourgs St. Marceau e St. Antoine, onde a alta sociedade olha pelas janelas, tensa como se aguardasse a passagem de um herói, dum César: assim a grande tragédia inglesa faz puxar o carro do seu tribuno popular, a plebe romana que ainda ontem ovacionava Pompeu para hoje aclamar César.

No carnaval, porém, o parisiense contenta-se em deixar viver o boeuf grass, enquanto em Manaus na véspera de São Pedro e São Paulo, o que agrada é o “boi bravo”. A propósito devo consignar que o odor do povo de Paris, por ocasião destas aglomerações, é extraordinariamente penetrante, e se deve chamar fétido, ao passo que o do bom povo de Manaus, sobretudo das raparigas fuscas, com os cabelos escorrendo, cheira à água do Rio Negro ou a uma odorífera flor de jenipapeiro, presa atrás da orelha. (…)”

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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