Folclore Nativo

Como Manacapuru se transformou na “Terra das Cirandas”

Postado por Simão Pessoa

Por Simão Pessoa

No início de 1980, sob a orientação do professor José Silvestre, a professora Perpétuo Socorro Oliveira montou pela primeira vez a Ciranda Flor Matizada, tendo como brincantes os alunos da Escola Estadual Nossa Senhora de Nazaré. Os estudantes adoraram a novidade, que logo se espalhou pela cidade como fogo em capoeira.

Na sequência, duas outras escolas resolveram apostar suas cartas na nova brincadeira: a Escola Estadual José Seffair, que criou a Ciranda Tradicional, em 1986, e a Escola Estadual José Mota, que criou a Ciranda Guerreiros Mura, em 1993.

As três cirandas faziam suas apresentações exclusivamente nas quadras das escolas para pais de alunos e alguns poucos convidados. Na verdade, as cirandas escolares eram apenas mais uma entre as diversas danças folclóricas exibidas no município durante o período junino, a exemplo das quadrilhas caipiras, dos cordões de pássaros, das danças internacionais e das brincadeiras de boi-bumbá. Foi quando entrou em cena um determinado personagem para reescrever a história cultural do município.

Nascido em Manaus e formado em Engenharia Civil pela Universidade do Amazonas, Angelus Figueira, filho e neto de pecuaristas, começou sua carreira política no PMDB, aos 38 anos, por insistência do ex-governador Gilberto Mestrinho, tendo sido eleito prefeito de Manacapuru em 1988.

Até então um empresário bem-sucedido, com fazendas de gado, matadouro e frigorífico em Manacapuru, uma rede de supermercados em Manaus e um estaleiro naval em Santarém (PA), Figueira tomou gosto pela política e não parou mais: fez seu sucessor em 1992 (o falecido engenheiro Eládio Albuquerque), trocou o PMDB pelo Partido Verde em 1994 e, dois anos depois, foi eleito prefeito de Manacapuru pela segunda vez.

Em junho de 1996, após assistir a uma apresentação da Ciranda Flor Matizada, ocorreu o “estalo de Vieira” do engenheiro: e se as cirandas pudessem se transformar num megaevento turístico, capaz de gerar emprego e renda para os moradores da cidade, a exemplo do que já ocorria com os bumbás de Parintins? E se Manacapuru se transformasse em sinônimo de ciranda no Amazonas? E se a cidade pudesse ser conhecida pelo resto do país como a verdadeira “Terra das Cirandas”?

Claro que aquela não seria uma tarefa muito fácil, mas sonhar não custa nada. O primeiro problema: Manacapuru não tinha uma tradição de ciranda. Nesse aspecto, a cidade de Manaus, com mais de 500 cirandas em atividade – muitas das quais tendo mais de 30 anos de existência – podia reivindicar o posto de “Terra das Cirandas”. E o que dizer de Tefé, onde tudo começou?


Em janeiro de 1997, já empossado no cargo, o prefeito Angelus Figueira chamou os representantes das três cirandas para uma conversa em particular e foi categórico:

– Nós precisamos transformar as cirandas em um produto turístico de grande apelo popular, mas isso depende mais de vocês do que de mim! – avisou. – Vocês precisam fazer uma ciranda mais criativa, ousada, inventiva, como nunca foi mostrada antes em nenhum lugar do mundo. Vamos apostar na originalidade. Minha sugestão é fazermos um Festival de Cirandas, com prêmios em disputa entre as três cirandas. Precisamos profissionalizar essa brincadeira e torna-la um fenômeno de massas, do mesmo jeito que aconteceu em Parintins. Eu, de minha parte, farei tudo o que estiver ao meu alcance e ao alcance da Prefeitura para um dia Manacapuru poder se orgulhar de ser berço de uma das festas mais populares do interior do Amazonas. E para que isso saia do plano das ideias e se torne realidade só podemos contar com a dedicação e o empenho de vocês!

A sugestão do prefeito foi aceita por unanimidade por todos os presentes. A primeira providência dos dirigentes das cirandas foi transformá-las em entidades jurídicas, com estatutos, diretoria e conselho fiscal.

Com o auxílio do Departamento Jurídico da Prefeitura, em pouco tempo estavam constituídos o Grupo Recreativo e Folclórico Ciranda Guerreiros Mura, o Grêmio Recreativo e Folclórico Ciranda Flor Matizada e a Associação Folclórica Unidos dos Bairros – Ciranda Tradicional.

Para dissociar o festival do período junino, os dirigentes concordaram em realizar o mesmo no último final de semana do mês de agosto. A ordem de apresentações das cirandas seria conhecida por meio de sorteio público durante a Festa de Aniversário da Cidade, no dia 16 de julho. Coube aos próprios dirigentes, em comum acordo, decidirem os critérios de julgamento do festival.

A Prefeitura ficou encarregada da escolha dos jurados entre folcloristas, artistas plásticos, músicos e escritores residentes em Manaus. Também foram os próprios dirigentes, após várias rodadas de discussões, que resolveram introduzir novos personagens na brincadeira, como o Apresentador, a Porta Cores e a Cirandeira Bela, os dois últimos itens inspirados na Porta-Estandarte e na Cunhã-Poranga dos bumbás de Parintins.


Ficou acordado que cada ciranda desenvolveria um tema específico, sem restrição de qualquer ordem, acompanhado de, no mínimo, cinco músicas inéditas para ajudar na compreensão do tema. Dezenas de aderecistas e alegoristas, das escolas de samba de Manaus e dos bumbás de Parintins, foram convidados para ajudar a formatar o novo modelo da brincadeira.

Surgiram os primeiros Cirandistas do município, designação utilizada até hoje para identificar a pessoa que idealiza ou desenvolve o tema. Novos termos foram incorporados ao universo das cirandas:

Nação – Torcida organizada de cada ciranda.
Barracão – Galpão destinado aos ensaios do cordão, construção de alegorias e confecção das fantasias.
A Outra – Ciranda adversária.
Cirandada – Estilo de composição musical específica para a apresentação da ciranda.
Cantador – Principal cantor da ciranda.
Chefe – Apitador, marcador ou coordenador do cordão da ciranda.
Sub-Chefe – Puxador do cordão e principal cirandeiro da roda.
Tocada ou Tocata – Grupo musical que acompanha os ensaios e apresentações da ciranda.
Tocador – Músico que compõe o grupo musical da ciranda.

Com aproximadamente 100 mil habitantes, a cidade também acabou se dividindo em três regiões geográficas distintas, cada uma delas delimitando o território “oficial” de cada ciranda.

A Flor Matizada representa os moradores do Centro e dos bairros Biribiri, São Francisco e Correnteza.

A Guerreiros Mura representa os moradores dos bairros Liberdade, Mutirões, Aparecida e Figueirinha.

A Tradicional representa os moradores dos bairros Terra Preta, Cohab-Am, Policarpo de Souza, União, Morada do Sol, Palhinha e Nova Manacá.

O 1º Festival de Cirandas de Manacapuru foi realizado em um improvisado tablado de madeira na Praça do Riachuelo. Cada ciranda se apresentou durante uma hora.

Os temas desenvolvidos abordavam as principais lendas amazônicas (cobra grande, mãe d’água, curupira, mapinguari, etc). A Ciranda Flor Matizada foi a grande vencedora da noite.

A resposta do público superou as expectativas. Mais de 5 mil pessoas prestigiaram o evento, transformando o entorno do tablado em um verdadeiro empurra-empurra tal o fluxo de pessoas querendo apreciar o espetáculo.

O prefeito Angelus Figueira percebeu que estava no caminho certo. Munido de fotografias e vídeos do evento, o prefeito procurou o governador Amazonino Mendes e vendeu seu peixe. O governador gostou da proposta.

No início de outubro foram iniciadas as obras de construção do Cirandódromo, no Parque do Ingá, ao lado da Estação Rodoviária do município. A iniciativa do prefeito foi muito criticada por políticos míopes e pessoas de visão estreita. “Como é que um município pobre como Manacapuru pode se dar ao luxo de construir um anfiteatro desse tamanho para uma simples brincadeira de estudantes? Aquele prefeito deve estar maluco!”, comentavam nas esquinas.

O 2º Festival de Cirandas, em 1998, coincidiu com a inauguração do Cirandódromo, um belíssimo anfiteatro com capacidade para 25 mil pessoas, dotado de camarote para as autoridades, bar e lanchonete, ambulatório médico, cabines para os jurados, palco elevado e um sistema de sonorização de altíssima qualidade.

Dessa vez, cada ciranda se apresentaria durante duas horas em uma determinada noite (sexta, sábado ou domingo) a ser conhecida por sorteio. Com uma apresentação impecável do começo ao fim, a Ciranda Flor Matizada conquistou o bicampeonato.

Cerca de 10 mil pessoas prestigiaram o evento, mas para aqueles sujeitos de mente obtusa a festa foi um verdadeiro fiasco. Os lugares vagos nas três noites de apresentação eram um atestado categórico de que o dinheiro público poderia ter sido melhor utilizado.

O prefeito aguentou a nova saraivada de críticas com o estoicismo de um monge zen e continuou incentivando os cirandeiros a dar o melhor de si para fazerem da brincadeira um evento profissional.

No 3º Festival de Cirandas, em 1999, as coisas começaram a mudar. A notícia de que em Manacapuru as cirandas haviam atingido um novo patamar de qualidade cruzou o Rio Negro e chegou a Manaus. Uma multidão de manauaras foi conferir o evento e voltou surpreendida.

Realmente, a brincadeira na Princesinha do Solimões havia evoluído para uma verdadeira ópera a céu aberto. Era um espetáculo novo que estava sendo gestado no estilo “work in progress”, com personalidade própria e um nível de elaboração e sofisticação jamais tentado antes.

As alegorias gigantescas e belíssimas remetiam automaticamente ao Festival de Parintins, mas as músicas não tinham nada a ver com o “dois pra lá, dois pra cá” das toadas: pareciam muito mais com uma mistura improvável de salsa, merengue e outros ritmos caribenhos, costurados pelo famoso “som dos beiradões”, muito comum nos arrasta-pés interioranos.

Com 12 pares no Cordão de Entrada e 60 pares no Cordão Principal, a Ciranda Guerreiros Mura foi a grande vencedora da competição. As 15 mil pessoas presentes em cada noite não chegaram a lotar o anfiteatro, mas os eternos críticos de plantão tiveram que morder a língua. A Princesinha do Solimões estava mesmo se transformando na “Terra das Cirandas”.

A partir daí o festival não parou mais de crescer, chegando a atrair mais de 80 mil pessoas para o município, como ocorreu em 2015. Hoje, os próprios moradores já admitem que o Parque do Ingá ficou pequeno para o gigantismo das apresentações e insistem que ele deve ser ampliado urgentemente.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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