Humor

“O humor é um ato de desespero”, desabafa Fernanda Young

Postado por Simão Pessoa

Por Edson Aran

Todo mundo adora odiar Fernanda Young. Talvez porque Fernanda seja uma personagem de si mesma, uma espécie de Lady Gaga de Niterói, abusada e cheia de tatuagens. Talvez porque Fernanda seja uma mulher bonita, atrevida e sem pudores para tirar a roupa e esfregar isso na cara da sociedade. Talvez porque Fernanda seja multi-talentosa e transmídia, como se diz agora.

Ela escreve romance, escreve poesia, escreve coluna, ela atua, ela desenha, ela apresenta programas e ela faz roteiros. A série “Os Normais”, uma das mais divertidas e certamente a mais elogiada sitcom da TV brasileira, foi criada por ela e pelo marido, Alexandre Machado. Os dois também assinam, entre outras séries, “Os Aspones”, “O Sistema”, “Odeio Segundas”, “Edifício Paraíso” e “O Dentista Mascarado”.

Conheci Fernanda Young em 2009 quando ela posou para “Playboy”, revista que eu dirigia naquela época. Não foi fácil. Fernanda quase me enlouqueceu com suas exigências e necessidade de atenção. Total control freak. Mas no fim o ensaio do Bob Wolfenson saiu e é, sem dúvida, um dos mais bonitos da história da publicação, além de ser um dos mais comentados

Entrevistei Fernanda na casa dela, numa sala atulhada de coisas e mais coisas e com muitas coisas em cima de outras coisas. Na parede, um quadro emoldura a “Playboy” e também a roupa de coelhinha que ela usou na capa da revista.

Essa conversa, como você já sabe, faz parte da série “O HUMOR NOS TEMPOS DA CÓLERA”, que quer discutir liberdade de expressão e a arte da comédia nesse mundo burro que estamos edificando.

Ah, uma coisa importante: a entrevista aconteceu antes daquele showmício nos Arcos da Lapa e do comercial do Neymar, portanto, menções à música “Cálice” e a expressão “gilete” não têm picas a ver com esses acontecimentos.

Mas vamos deixar que a Fernanda fale. Fala, Fernanda.

Nem tudo mundo sabe, mas você vive uma relação lésbica com a Eleonora V. Vorsky, autora de “A Vingança do Bastardo”. Como está Eleonora?

A Eleonora está cada dia mais genial. Aliás, foi com ela que eu comecei a escrever humor. O Alexandre Machado, que é a Eleonora, estava fazendo “O Calor na Bacurinha” no “Planeta Diário”. Ele estava de saco cheio de escrever aquilo e também queria me comer (risos), então eu comecei minha carreira de escritora e também de lésbica ao mesmo tempo… Isso hoje é um acinte, porque eu tinha 16 e ele tinha 27, mas não se tratou de abuso e nem eu o seduzi para conseguir vantagens.

E o Alexandre Machado, como está? O que ele teve?

Ele teve um negócio fodido. Foi uma coisa horrível pra mim e pra ele. Nós viajamos pras nossas férias anuais, que é uma viagem pra Disney que eu não suporto mais. Mas fomos, ele saiu daqui gripado e, como bom homem hétero que é, não foi ao médico… chegou gripado, gripado chegou. Quando ele chegou lá e disse que ia se deitar, sem ao menos tomar banho, eu pensei: “tá errado, algo tá errado”. Aí ele cismou que estava com dengue, mas não queria ir ao médico em Miami, porque tinha receio que pensassem que ele era um aborígene como uma doença tropical contagiosa. Mas não era dengue, era sepse.

Que diabo é sepse?

Sepse é uma infecção generalizada provocada por uma bactéria que, no caso, não foi identificada. Aí parou o corpo inteiro. Parou os rins, ele foi para hemodiálise, até teve ataque cardíaco, teve arritmia, teve trombose… Ele morreu. Foram três mortes. Ele ficou um mês internado em Miami e para trazê-lo para o Brasil eu assinei o óbito dele.

Cacete, Fernanda…

E ele está simplesmente ótimo. Um gênio criativo. Estamos trabalhando juntos num projeto de humor pra Globo e ele está ótimo. Ainda tem algumas sequelas físicas, emagreceu muito, e está caminhando com muletas. Agora, se eu fosse uma profissional liberal, eu teria me matado. Porquê se você não tiver a capacidade de observar os vernizes, os filigranas, os cheiros, as texturas… não dá. Foram tempos muito difíceis, foi muito duro lidar com aquilo, mas hoje eu consigo dizer “graças a Deus, a gente passou por isso”. E ele já consegue ver isso também. Nos quatro meses de UTI, eu comecei a escrever um livro para entender aquele mistério do sofrimento, porque o sofrimento pode ser extremamente rico.

Eu a vejo como uma autora de humor, embora seus livros sejam dramáticos e suas séries sejam cômicas. Por quê há essa diferença entre a sua literatura e o seu trabalho de roteirista?

Quando comecei a escrever para TV, eu fui para o humor porque o Alexandre é de humor. E talvez isso aconteça porque o Alexandre, na sua condição de heterossexual masculino, não queira encarar o drama, a vida… Mas na minha literatura tem muito humor também. Porque é um ato de desespero. O humor é um ato de desespero. Primeiro é um ato de inteligência, claro, mas também de desespero. Um fundamentalista não tem humor. O Bolsonaro não tem humor.

O fascismo sempre começa destruindo o humor, né? Não existe caricatura do Hitler na Alemanha nazista, por exemplo…

É curioso isso. Em toda época fundamentalista ou fascista, a primeira coisa que fazem é censurar o humor. Nós, que somos autores de humor, somos obrigados a nos dobrar a uma exigência que é supostamente do público. Dizem “o público não aguenta mais esse tipo de piada…” E aí você fica pensando: “Mas quem disse isso?”. É o público que não quer ou há uma maldade aí para que determinadas coisas não sejam ditas na comédia, que é sempre anárquica? Há uma malícia muito grande.

Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães, os eternos noivos da série “Os Normais”

Você e Alexandre escreverem “Os Normais” que, na minha opinião, é a melhor comédia de situação da TV brasileira. Se “Os Normais” fosse pro ar hoje, a série seria igual?

Não existira. Não fariam. Outro dia eu e o Alexandre vimos a série nesse canal que reprisa. Nós rimos muito, mas eu fiquei chocada. Como é que deixaram? O fato é que não existe uma censura explícita, não tem um censor dentro da rede Globo, mas é que a sociedade começa a emburrecer… E ela é emburrecida maliciosamente. Primeiro você tira tudo da sociedade, para que ela se sinta insegura. No momento em que ela se sente insegura, ela tem que partir para a religião, que tanto pode ser a religião tradicional como também a política radical. Existe gente mais chata do que petista e evangélico? É tudo a mesma coisa! Nós estamos diante de coisas binárias que na verdade são idênticas.

Eu sempre repito a mesma pergunta nessas entrevistas: existe uma “censura do bem”, justificável, ou censura é sempre do mal?

Não, não, não, censura não pode. Não é fla-flu. Discordar é o exercício do bom senso. Não é pro discordante ser massacrado. E eu sou uma comediante que nunca fez nada de errado, eu acho… a não ser um debochezinho que eu fiz com o Milton Nascimento que o deixou meio chateado…

O que você fez com o Milton Nascimento?

Ah, falei que se escutar “Coração de Estudante”, eu me jogo pela janela.

Bem, somos dois. (risos) Mas, vem cá, “Cálice” é bem pior…

Você tem horror a “Cálice”? O Lobão também. Mas eu tenho que confessar que tenho um certo fascínio pelo Chico Buarque… Eu não escuto MPB, só muito raramente e por algum motivo muito pontual. Me enfada. Mas eu reconheço o valor poético do Caetano Veloso e do Chico Buarque. Porque foi ouvindo os dois na rádio de um apartamento de subúrbio, sendo criada por uma avó cabeleireira e analfabeta, que eu comecei a escrever. Eles me fizeram escrever. Não vou ao show vibrar com eles, mas tenho respeito. Agora, eu li o livro do Lobão e, se não dá pra concordar com ele, também não dá pra discordar totalmente…

Pois é, eu discordo de muita coisa que o Lobão diz, mas concordo com ele numa coisa: quem viveu os anos 80 e sonhou com a derrubada daquele establishment, da direita e da esquerda, e achou ingenuamente que o mundo tinha mudado, fica decepcionado mesmo. Todos os chatos voltaram. São os mesmos senhores de engenho tomando conta da cultura nacional faz mais de cinquenta anos…

Sim, é uma ditadura também, é um coronelismo cultural. Não conheço o Chico Buarque pessoalmente, mas conheço o Caetano. Nunca cheguei a ter grandes conversas com ele por causa dos “béques de bucetas” que impedem você de chegar perto. Mas o chato é que as pessoas são sempre as mesmas, é uma espécie de monarquia cultural… e o pior é que eles apoiam e viabilizam o ruim. Só porque a pessoa tem uma certa maestria, uma primazia musical, ela acha legal fazer um dueto com Nego do Borel. Nada contra, que existam mil Negos do Borel, mas caralho… E não estou sendo elitista, eu cresci no subúrbio escutando rádio. Mas como diz o Lulu Santos, “nós estamos na fase intestinal da música brasileira”. E essa elite cultural aprova isso.

Você convive com essas pessoas, mas não paga pedágio pra elas. E, por conta disso, apanha muito. Você gosta de apanhar, Fernanda?

Não, eu não gosto de apanhar. Mas, olha, eu não estou bem na fita não. Eu tenho 22 anos de literatura e tem oportunidades que ainda me fogem. Nunca deixei de ter trabalho, mas preciso ter mais trabalho, eu tenho quatro filhos. Em 2015, não consegui lançar um livro de poesias porque me disseram que poesia não vende. Aí eu fiquei pensando: “será que deu pra mim?”. Não porque eu não tenha qualidade, mas porque não vou ficar batendo palma igual foca para esses seres que são instituições da cultura nacional. Eu nunca foi chamada pra ir pra Flip, por exemplo. Esse ano eu fui, mas numa off-Flip. E também porque era Hilda Hilst. Se Hilda estivesse viva, ela também não seria chamada para a Flip.

E você provoca uma certa ira nas pessoas, né? Quando você posou para a “Playboy” teve um programa de rádio cool, de gente supostamente muito cool, que passou o tempo inteiro falando mal de você. Eu não consigo entender. Pra se irritar com uma revista, você precisa ir na banca, comprar, pagar e então se irritar. Não faz sentido.

Eu vou dizer porquê. Depois de muito pensar, eu cheguei à uma conclusão: é inveja. Mas inveja de quê? Porque sou bonita, engraçada, rica? Por que sou bem sucedida, por que tenho uma família linda e não me submeto a nenhum código opressor de tradição? Não, o ódio está relacionado ao fato de eu ser livre. A liberdade traz muita inveja. Poder fazer o que quiser transtorna a cabeça das pessoas e elas ficam agoniadas. A raiva não era do ensaio, não era porque eu estava linda e magra aos 40 anos. A raiva era porque eu quis fazer e fiz, porque aquele ensaio é uma instalação. A capa de coelhinha rompe com o ensaio interno, que é a história de uma mulher que está esperando alguém, mas não é uma personagem, sou eu mesma. Porque não suporto essas mulheres que vão pra Cuba fingir que é puta. Ah, para com isso, mostra logo o bucetão! (risos) Acho que minha “Playboy” que é uma obra muito bonita e foi um dos grandes momentos da “Playboy” que, pra minha formação estética e feminista, é uma revista muito importante. A “Playboy” é um grande orgulho.

Fernanda Young com o icônico uniforme de coelhinha na capa da “Playboy”

Já que entramos no tema da nudez e você acaba de publicar “Pós-F”, um livro que reflete sobre a situação da mulher, o que você acha desse novo feminismo? Já nos anos 90, Camille Paglia chamava atenção para um aspecto conservador e reacionário do feminismo que negava o impulso sexual. E você, o que pensa?

Li muito Camille Paglia e tenho muitas opiniões iguais às dela. É um saco. E fica feio, fica burro, fica assexuado e tira a trama amorosa, tira o galanteio… A Fernanda Torres escreveu aquele texto sensacional e…

Você tá antecipando minha pauta….

E o pior é que a Fernanda Torres escreveu um “mea culpa”. Porra! Fernanda, como é que você escreve um “mea culpa”?

Bem, mas ela foi obrigada a fazer a retratação porque sofreu muita pressão…

Não, ela não foi obrigada. Ela fez porque quis, me desculpe. A Fernanda Torres é uma potência de talento, ela é a melhor atriz do Brasil – eu e Fernanda Montenegro achamos – e é uma mulher que escreve bem, que pensa bem e que é engraçada e maluca. Ela é maluca. E aí ela escreve uma “mea culpa”?! Ela só fez isso porque sentiu a potência do ódio, a virulência da burrice. Eu também já senti isso, mas ela é de uma elite cultural, ela pertence à monarquia.

Peraí, você também frequenta a corte…

Não, eu sou uma marginal. Eu atuo sem proteção alguma. E é curioso porque trabalho para uma empresa enorme e agora vou ser colunista do “Globo”. Eu consigo isso tudo porque sou resoluta, não faço concessões e sou ética pra cacete. Tudo isso dá durabilidade ao trabalho.

O humor, por natureza, tem que atacar o poder. Mas será que perdemos a capacidade de identificar quem é que está no poder? Porque hoje muita gente que se diz oprimida atua como opressora. Quando você consegue organizar um grupo para impedir uma crônica, você não é mais oprimido. Ou é?

Não, não é mais. O problema da minoria é que sempre vai ter uma minoria da minoria da minoria da minoria. E quando você se coloca numa minoria, você se torna um coitado. Agora, não dá pra usar o fato de ser uma minoria para tirar vantagem. Porque aí a coisa vira um “label”. Esse papo de feminismo tá chato pra cacete e o “Pós-F” é para pensar isso. Porque o feminismo é necessário, o assunto é sério, a grosseria está aí, os números são claros, está tudo muito claro. Existe porquê lutar. Mas existe uma enorme quantidade de mulheres que estão conseguindo se promover através desse discurso, porque o feminismo virou um “label”. Você vai no “Saia Justa”, como eu fui recentemente, e percebe que se não tem o discurso com esse “label”, você não tem mais trabalho. Quando eu digo que as pessoas têm o direito de não ser feministas, as mulheres ficam furiosas. Peraí, alto lá! Elas têm direito sim. O que eu acho uma loucura é a mulher ser machista. Porque o machismo é ruim pro homem e pra mulher. O patriarcado é terrível pros homens. O Alexandre teve o que teve porque ele é cria do patriarcado. Mesmo que tenha uma mulher que trabalhe feita uma louca, a psique dele é do patriarcado, ele não se cuidou porque ele não podia falhar. Olha como os homens estão. A mulher machista é grossa com o homem e o homem machista é grosso com ele próprio. O sistema é ruim. Agora, não poder ser feminista é uma loucura. Qual é o problema?

Eu volto à questão do oprimido versus opressor. Porque as integrantes do movimento #MeToo e do #TimesUp são as mulheres mais poderosas e mais bem pagas da indústria do entretenimento…

E que nunca fizeram porra nenhuma! E depois vão todas de preto pro Oscar. Meu cu! Quantas delas não seduziram para conseguir vantagens? Eu não estou dizendo que o assédio seja permitido e nem que ele não seja horrível… E essas denúncias revelaram pessoas indigestas, como aquele Harvey Weinstein… Mas todo mundo sempre soube das histórias dele. E quem denunciou primeiro foram mulheres que não eram bem sucedidas na indústria. Depois é que as famosas resolveram dizer alguma coisa. As que foram condescendentes antes, permitiram aquela trama. Do que nós estamos falando? Gente, Marilyn foi a rainha do teste do sofá. E só agora se denuncia o assédio? No Brasil, nós sabemos de inúmeras histórias e não veio nenhuma a público. Por quê? Porque todo mundo foi condescendente. Eu falei isso no meu livro e estou sendo muito questionada por isso. Mas agora tudo é assédio? Agora, eu vou te dizer, não tem quem não tenha sofrido alguma espécie de assédio. Eu comecei na televisão com 16, 17 anos e só não fui assediada porque me impus de tal forma que tornei impossível que aquilo acontecesse.

Em “Pós-F”, primeiro livro de não-ficção, Fernanda decide arrumar encrenca com as feministas

O que você acha dessa perseguição à nudez e ao erotismo que parte do feminismo propõe? Agora nem o Concurso de Miss Universo vai ter mais desfile de maiô, veja você. Existe alguma diferença entre essa carolice feminista e o moralismo religioso?

Acho de uma sonsice essa coisa. A nudez é um poema. A nudez é um ato político, de liberdade e de erotismo. Quero fazer um ensaio agora com o Jairo Goldflus que vai ser bem cru, isento de disfarces. Outro dia vi um post dizendo que a “nudez da mulher está sempre a serviço do homem”. Quem disse, cara-pálida? Fiz minha “Playboy” pensando nas bichas, nas mulheres e nos homens também. Fiz para todos. Quando lanço meus livros, tem leitoras que levam a “Playboy” para que eu autografe. Agora estão acabando com o púbis. Cadê o púbis?

Enquanto isso, a Beyoncè só anda de maiô. Porque só ela pode?

Ela só anda de maiô e ventilador, né? E ela é considerada uma voz feminista em defesa da mulher. É contraditório. Agora, quer ver coisa mais louca do que isso que aconteceu na Copa? A Fifa decidiu proibir de focalizar mulheres bonitas no público. Isso é o pensamento da burca! Sejamos feios ou sejamos protegidos por algo que nos tape. A mulher bonita não pode mais aparecer? É uma loucura. Quer dizer que eu sou focalizada, eu sou feia? Olha que merda.

E como é que nós vamos combater essa burrice, Fernanda? Tem jeito?

Então… só não chega a ser triste porque é engraçado. Agora, nós que somos pensadores, que somos escritores, nós, infelizmente, temos que falar sobre isso. Porque é uma época riquíssima para a gente escrever e trabalhar. Só que ao mesmo tempo é muito cruel. Eu gostaria de, como escritora, de ser uma narradora aérea, sem nenhum sentimento ou envolvimento passional. E sem ideologia. Mas não dá porque eu sou brasileira, meus filhos são brasileiros e minha língua é a minha pátria. Então, o que eu vou fazer? Se eu fosse uma comediante, uma pensadora ou uma intelectual fria, como acho que o Diogo Mainardi é, eu faria… mas ele também tem uma certa psicopatia, né? (risos) Tudo bem. Que bom que ele é um psicopata. Tenhamos pessoas assim. Mas eu não consigo. Eu não consigo olhar de cima e trabalhar no assunto. E eu acho que nós não vamos ver melhoria nenhuma nesse país, nem eu e nem você.

Você é tão pessimista assim?

Porra, com certeza! Meu amor, eu nasci em 1970 cravado. Eu vivi a década de 80 com fervor, porque comecei tudo muito cedo. Conheci o Alexandre Machado no Crepúsculo de Cubatão, em Copacabana, aos 16 anos, que eu frequentava desde os 14 sempre vestida de preto. Muito preto, muito preto. Mas o fato é que eu vi um país sensacional. Eu vi uma música sensacional, uma música que rompia com o coronelismo cultural – mas até o coronelismo cultural era bom na época. Tinha uma estética engraçada, uma televisão ótima. Eu vi “Saramandaia”, do Dias Gomes. Eu vi Janete Clair, Guel Arraes, “Armação Ilimitada”, e o próprio Alexandre, que foi um dos criadores do “TV Pirata”. Olha o que a gente foi e veja como a gente está… O que se deu? Veio essa esquerda dominada maliciosamente por gente, não exatamente burra, porque é espertíssima e inteligente pra caralho, mas maliciosa porque usa um discurso edificante e que parece justo, mas que vai emburrecendo, emburrecendo, emburrecendo, emburrecendo… tudo! Que é pra gente não refletir.

Mas não foi só a esquerda, porque a direita é mais burra ainda. Foi uma soma de ignorâncias.

Foram os dois. Eles são os mesmos. Dilma tinha o Temer como vice-presidente. Agora gritam “Fora, Temer”, mas não é “Fora, Temer”, é “Temer jamais!”. Eu não tenho partido e inclusive nem voto. O primeiro passo para uma democracia é o direito de não votar, então eu não voto. Mas a burrice é apartidária. O politicamente correto também, porque alimenta o domínio e a burrice, porque exclui o raciocínio eliminando o deboche, a ironia, a malícia, o erotismo…

Tá, mas eu entrevistei a Laerte e ela tem posições completamente diferentes das suas – e das minhas também. Laerte diz que cada vez que você faz uma piada com bicha, você está matando simbolicamente alguém…

Ah, vai tomar no cu! (risos). Desculpa, Laerte, adoro você, mas… não. As bichas fazem piadas de bichas o dia inteiro e são todas engraçadíssimas. Pelo amor de deus. Eu ando muito com bicha

E você tem um fã clube gay enorme também…

Tenho, tenho sim. Eu amo, amo, amo. E me amam também. São pessoas muito leais a mim. Tem um cuidador do Alexandre, um enfermeiro, que é uma bicha engraçadíssima chamado Alberto. Eu adoro ele. E eu fiz um aniversário pro meu filho, o John, e ele falou: “Deixa eu ir? Eu vou ser a Xuxa Preta!”. Quer dizer, a piada é dele, foi ele quem fez, mas agora a gente só chama ele de “Xuxa Preta”. E não pode? Uau! Quem disse? Por exemplo, gordo. Alexandre sempre gostou de fazer piadas de gordo e nós fomos acusados de “gordofobia” porque fizemos uma personagem gorda na série “Odeio segundas” e começaram com “Oh! Chamaram de gordo! Não pode!”. Gente! O Alexandre é gordo, a atriz estava felicíssima com a personagem! Isso é humor! Isso é muito diferente de entrar no Instagram da Preta Gil e a chamar de “orca encalhada”. Isso não tem humor, isso é ofensivo. A ironia é um bem muito sofisticado… agora, a gente vai ter que explicar o que é ironia?

Infelizmente chegamos a isso…

Num outro programa que a gente fez, onde eu inclusive atuei, o “Edifício Paraíso,” a Marisa Orth faz a Soraia, que é uma sapatona bem sapatona. Conheço um monte de pessoas como ela, eu ando com elas. E aí levei uma pessoa da “Folha” para a filmagem e a repórter falou “você não acha que aquele personagem é estereotipado, que alimenta a homofobia, porque não existe aquele tipo de pessoa…”. Eu falei: “Bem, então não sei onde você está andando, porque eu ando com muitas delas….” E, inclusive, são super felizes, porque comem as mais gostosas e são sensacionais.

O Thammy Gretchen pegou muito mais mulheres do que eu… e eu trabalhei na “Playboy”.

E Thammy tem humor. Ela é muito agredida e ela responde com humor. Eu não a conheço, ou o conheço, ou “e” conheço, mas ela tem humor. Ela tem um posicionamento e ela é emblemática nessa coisa desses gêneros todos que existem e que eu não consigo mais determinar… eu adorava dizer que era bissexual, gilete… mas agora confundiu tudo…

Gilete é um termo que precisa ser recuperado.

Mas eu tenho usado muito. Eu falava de boca cheia que era gilete, mas a bem da verdade, eu nunca fui tanto (risos). Eu tenho essa deficiência de caráter e não alcancei meu status de gilete da maneira que eu pretendia. Mas era um grande lance uma humanidade bissexual. Agora as caracterizações são tantas que acho que até perdemos a possibilidade de sermos livres, porque a gente acaba não sendo nada…

Mas voltando um pouquinho pro feminismo, tem uma coisa que me intriga: ao mesmo tempo que existe toda essa discussão sobre machismo, o maior sucesso literário entre mulheres é “50 tons de cinza”. E é a história de uma mulher que apanha e dá para um macho alfa típico. A válvula da escape é a literatura vagabunda?

A válvula de escape é tudo que seja vagabundo. E é proposital, porque exclui a indagação, exclui o conflito e exclui a dor. Mas a gente está sofrendo todos os dias e o tempo inteiro. Porque a gente está indo em direção à morte e não há como isso não ser sofrido. Aí as pessoas vão ao Cirque du Soleil, que é a maneira mais estúpida de disfarçar a dor.

O humor também não é uma forma de disfarçar a dor?

Não, não é, porque o humor é uma forma extremamente cirúrgica e sensacional de crítica. E é potente porque anuncia aquilo que muitas vezes é impossível anunciar de outra forma. O humor e a estética. O humor e a poesia. O humor e a filosofia.

De tudo o que você fez, escreveu, apresentou, atuou…o que você curte mais?

Em literatura, gosto de “Aritmética”, porque é um romance perfeito estruturalmente e ainda quero transformá-lo em série. E gosto muito de “A louca debaixo do branco”, que é um romance que ninguém entendeu, porque eu me propus a fazer a construção e a desconstrução do amor. E tinha uma exposição onde você entrava dentro do livro, com trilha, com filme. Fiquei dois anos, gastei muito dinheiro naquilo e o projeto não foi entendido. Foi criticado como uma obra egocêntrica. Também gosto de “Estragos”, que reúne textos meus de 16 a 24 anos, que não são textos bons, mas são muito genuínos. Eu tenho muito carinho por aquela jovem que não tinha recurso nenhum, não tinha meios, não tinha máquina de escrever, não tinha nem onde morar e escrevia com tanta disciplina.

Capa do romance-instalação de Fernanda Young, “A louca debaixo do branco”

E das séries?

Das séries, adoro “Os Aspones” e também “O Sistema”, que tinha um herói que era um anão… Os personagens eram todos tão idealistas e contra o sistema, mostravam o peito para a câmera. Porque eu e o Alexandre estávamos irritados com essa história de que tudo é culpa do sistema. Eu fico puta. A Internet cai, eu ligo para Vivo e eles dizem: “Não posso fazer nada, senhora, é culpa do sistema”. Ah, tenha dó. Eu, quando faço merda, eu assumo. Eu sou destemperada, posso ser agressiva e, quando fico triste, eu ataco. Então eu assusto as pessoas e até perco algumas. Gostaria muito de ser uma pessoa menos furiosa, mas eu assumo as merdas que eu faço. Não acho que é culpa do sistema.

Até porque o sistema quem constrói é a gente…

Sim, somos todos coautores de toda e qualquer merda. Mas o que podemos fazer? Nada. Eu continuo queimando tudo até a última ponta….

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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