Causos Políticos

Gilberto Mestrinho e os jacarés de Nhamundá

Postado por Simão Pessoa

AGOSTO de 1991. Uma reportagem exibida no programa “Fantástico”, da Rede Globo de Televisão, deixou os amazonenses – e os brasileiros do restante do país – verdadeiramente perplexos. A matéria televisiva dava conta de que no município de Nhamundá, ali na ilharga de Parintins, havia uma superpopulação de jacarés-açus (os maiores e mais perigosos) estimada em 2 milhões de exemplares, que estariam ameaçando os pouco mais de 20 mil moradores do município.

Depoimentos de pescadores supostamente atacados pelos répteis davam mais veracidade à reportagem.

Em uma entrevista para o jornal Amazonas em Tempo, alguns dias depois da exibição da matéria no “Fantástico”, o prefeito de Nhamundá, Mário Paulain, colocou mais gasolina na fogueira:

– Há 24 anos o município de Nhamundá tinha 50 mil cabeças de gado e provavelmente 5 mil jacarés machos e 5 mil jacarés fêmeas. Levando-se em consideração que, para esses animais, a enchente e a vazante dos nossos rios não são preponderantes para sua sobrevivência – diferentemente do gado bovino –, conclui-se que temos hoje uma população de jacarés em torno de 2 milhões de exemplares. Tal cálculo está dentro de uma premissa plausível, já que o Brasil não tem o mínimo conhecimento dessa riqueza que temos em nossa região amazônica.
Recém-eleito para o seu terceiro mandato, o governador Gilberto Mestrinho encampou a tese de Mário Paulain e solicitou uma licença especial do Ibama para promover o abate seletivo de jacarés em Nhamundá. Várias entidades ambientalistas se levantaram contra a proposta do governador.

Rapidamente, a quizomba provinciana virou discussão internacional porque o Brasil estava prestes a sediar, no Rio de Janeiro, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida como ECO-92.

Um jornalista da Folha de S. Paulo foi a Belém para entrevistar o governador do Pará, Jader Barbalho, a respeito do assunto:

– Governador, a cidade paraense de Faro fica do outro lado do rio Nhamundá, exatamente na frente da cidade amazonense de Nhamundá, ali na confluência com o rio Amazonas. É verdade que há uma superpopulação de jacarés atacando os ribeirinhos das duas cidades?

– Nunca ouvi falar nisso! – diz Jader Barbalho. – Isso é invenção do Mestrinho! Em Faro não se registra ataques de jacarés há mais de 50 anos…

O jornalista voou de Belém a Manaus para entrevistar o governador Gilberto Mestrinho a respeito do assunto:

– Governador, estive com o seu colega paraense em Belém e ele me disse que nunca ouviu falar nessa história de superpopulação de jacarés no Baixo-Amazonas e que não é registrado um único caso de ataque de jacaré na cidade de Faro há pelo menos 50 anos. Quem está mentindo, o senhor ou o governador Jader Barbalho?…

– Nenhum dos dois! – explicou candidamente Gilberto Mestrinho. – É que o jacaré é um bicho muito inteligente, muito esperto, muito ladino. Ele vem se adaptando e sobrevivendo desde a época dos dinossauros, não é bobo, não. Com o tempo, ele aprendeu na prática os hábitos alimentares dos ribeirinhos amazônicos e isso vem sendo transmitido de geração para geração. Na culinária amazonense não se come jacaré. Aqui a gente come tartaruga, tracajá, iaçá, irapuca, cabeçudo, zé-prego, jabuti, mas não se come jacaré. Só quem gosta de comer jacaré são os nossos irmãos paraenses. Então, os jacarés só chegam até Nhamundá e dali não passam. Porque se atravessarem para Faro, eles vão levar zagaiada, arpoada, tiro de rifle, porretada na cabeça e acabar na panela dos ribeirinhos paraenses. É por isso que em Nhamundá tem 2 milhões de jacarés e em Faro não tem nenhum…

O jornalista abandonou a entrevista cuspindo fogo. Em questões ecológicas, o saudoso Gilberto Mestrinho dava bolo de palmatória em catita maneta. Está fazendo falta.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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