Folclore Nativo

Do Xaxado às Danças Nordestinas (2)

Postado por Simão Pessoa

Na maioria das vezes, os cangaceiros eram oriundos da lida com o gado, ou seja, tratavam-se de vaqueiros habilidosos, que faziam as próprias roupas, caçavam e cozinhavam, tocavam o “pé-de-bode” (sanfona de oito baixos) em dias de festa, trabalhavam com couro, amansavam animais e eram muito religiosos. Só ingressavam no cangaço por não suportar mais as injustiças sociais de que eram vítimas.

Os cangaceiros se vestiam com roupas de tecido grosso, geralmente um tecido entrelaçado de cor ocre (cor de barro, argila), denominado “gabardine”, semelhante ao tecido do “jeans” utilizado pelos camponeses norte-americanos ou, em certas empreitadas dentro das caatingas, até com perneiras, calça e gibão de couro. Calçavam alpercatas e meias grossas de algodão para se proteger de gravetos e espinhos.

Nas alpercatas (ou “apragatas”), há referências de que usavam duas virolas (o altiplano dos solados), uma atrás e a outra na frente, para que o rastro não indicasse a direção que o bando seguia. Eles também se moviam em fila indiana pisando sempre na mesma pisada do que ia na frente e dessa forma também o rastro só mostrava uma pessoa andando, não se sabendo para qual lado. Outras vezes, o último cangaceiro da fila indiana caminhava de costas limpando os rastros do bando com pedaços de plantas.

A expressão cangaço está relacionada à palavra canga ou cangalha: uma junta de madeira que une os bois para o trabalho. Assim como os bois carregam as cangas para realizar o trabalho de força, os homens que levavam os rifles nas costas começaram a ser chamados de cangaceiros.

Como já foi dito, o cangaço advém do século 18. Já naquela época, o cangaceiro Jesuíno Brilhante (vulgo “Cabeleira”) ataca o Recife, mas algum tempo depois é preso e enforcado, em 1786. De Ribeira do Navio, no estado de Pernambuco, surgem também os cangaceiros Cassemiro Honório e Márcula.

O cangaço passa a se tornar, então, uma profissão lucrativa, surgindo vários grupos que roubam e matam nas caatingas, destacando-se os bandos de Zé Pereira, dos irmãos Porcino, de Sebastião Pereira e de Antônio Quelé. No começo da história, contudo, eles representavam grupos de homens armados a serviço de coronéis.

Em 1897, surge o primeiro cangaceiro importante, Antônio Silvino, considerado o “Robin Hood da caatinga”. Com fama de bandido cavalheiro e bem-educado, que respeita e ajuda financeiramente muitas famílias pobres, ele atua durante 17 anos nos sertões de Alagoas, Pernambuco e Paraíba, até ser preso pela polícia pernambucana em 1914.

Outro cangaceiro famoso é Sebastião Pereira (chamado de Sinhô Pereira), que forma o seu bando em 1916 e se torna o primeiro chefe de Lampião. Nesse contexto surge a figura do padre Cícero Romão Batista, que concilia interesses opostos e amortece os conflitos entre as classes sociais. A religiosidade praticada em torno do padre Cícero representava “aceitação” das regras políticas e sociais da nascente República.

O cearense Cícero Romão Batista, líder religioso do povo sertanejo oprimido pelo latifúndio, pelo Estado e por uma Igreja distante e ausente, nasceu no Crato, em 1844, e faleceu em Juazeiro do Norte, em 1934, aos 90 anos de idade. O “padroeiro do Nordeste”, pessoa influente na região, foi o fundador de Juazeiro do Norte, em 1872. Além de orações e bençãos, “Padim Ciço” aconselhava seus “afilhados” sobre atividades econômicas, doenças, questões familiares, desavenças e sugeria nomes de candidatos para as eleições.

Participante ativo da política, ele se envolveu diretamente nas disputas que envolviam mortes e assassinatos entre as oligarquias das famílias dos coronéis do sertão nordestino, tendo se ligado aos coronéis, aos jagunços e aos cangaceiros, ao sabor de suas conveniências. Além de ter sido prefeito, deputado federal e vice-governador, Padim Ciço ganhou a fama de “milagreiro” e se tornou uma lenda viva para os sertanejos nordestinos.

Para combater os cangaceiros, o Poder Público criou os “esquadrões volantes”, que reuniam ex-militares veteranos da Campanha de Canudos, policiais civis e jagunços pagos pelos coronéis em grupos de 20 a 60 homens.

Nestas forças policiais quase paramilitares, alguns dos seus integrantes se disfarçavam de cangaceiros para se misturar no meio da população e tentar descobrir os esconderijos dos verdadeiros cangaceiros ou identificar os coiteiros que pudessem dar tais informações.

Os cangaceiros chamavam os “volantes“ de “macacos” por causa do uniforme de cor marrom usado por eles. A população, entretanto, achava que eles se chamavam “macacos” porque pulavam como loucos quando viam o bando de Lampião surgindo na linha do horizonte.

O certo é que pelo fato de não serem benquistos pela população, os tais “macacos” atuavam com mais ferocidade ainda do que os próprios cangaceiros, criando um clima de violência extrema em todo o sertão nordestino.

Entre os cabras de Lampião mais conhecidos estavam Corisco, José Sereno, Galo, Antônio Pereira, Maritaca, Antônio Marinheiro, Vinte e Cinco, Ananias, Alagoano, Andorinha, Labareda, Arvoredo, Ângelo Roque, Beleza, Candeeiro, Beija-Flor, Bom de Veras, Cícero da Costa, Cajueiro, Volta Seca, Cigano, Cravo Roxo, Cavanhaque, Chumbinho, Cambaio, Criança, Delicadeza, Damião, Ezequiel, Português, Fogueira, Jararaca, Juriti, Luís Pedro, Linguarudo, Lagartixa, Moreno, Moita Braba, Mormaço, Ponto Fino, Porqueira, Pintado, Sete Léguas, Sabino, Trovão, Zé Baiano, Zé Venâncio, Tripa Seca, Azulão, Riqueza, Canjica, José Baiano, Moita Brava, Zabelê, Barreiras, Asa Branca, Luís Padre, Incubadora e Baioneta.

Quando um integrante do grupo morria, seu apelido era adotado por um novato. Essa é uma das razões que faziam os cangaceiros parecerem invencíveis, pois os nomes eram “imortais”. Eles também não deixavam a polícia avaliar o resultado dos combates. Levavam os mortos e, quando não dava, cortavam as cabeças e levavam com eles, dificultando a identificação. Para se divertir, os cangaceiros dançavam o xaxado.

A dança do xaxado é uma representação do trabalho de fazer o plantio da semente no chão, prática comum entre os sertanejos nordestinos desde tempos imemoriais. Tanto nas pequenas propriedades rurais quanto nos latifúndios, duas pessoas, durante muitas horas, conforme a extensão do tamanho do roçado, realizavam manualmente a plantação do feijão ou do milho: uma andava na frente e cavava o buraco com uma enxada e a outra, que vinha atrás levando a tiracolo um “manculão” (saco de pano contendo as sementes), com a mão lançava a semente dentro do buraco e com o pé afofava a terra.

Os movimentos do xaxado são os de balanceio do corpo em direção ao solo e o lançamento da perna para frente o que corresponde aos atos de cavar a terra e lançar a semente. É uma lembrança feliz dos tempos em que há inverno e todo sertanejo, homem ou mulher, trabalha o plantio.

Eles xaxavam o feijão ou o milho, e xaxar, também chamado “afofar”, é aconchegar a terra com o pé para junto do caule fincado no chão para proteger o broto. O xaxado é tido como uma dança masculina na qual não se utiliza nenhum instrumento musical – somente vozes, palmas e batidas dos pés fazem a marcação dos compassos.

Os cangaceiros eram ex-agricultores e ex-vaqueiros e, evidentemente, também se lembravam dos rituais utilizados na época das plantações e colheitas nos sítios do torrão natal. Por isso, para se divertirem quando não estavam enfrentando os “macacos”, eles dançavam, homem com homem, um na frente do outro, a dança do xaxado.

Com o passar do tempo houve modificações na dança e os cangaceiros abraçavam cada um o seu fuzil ou carabina, como se fosse a dama. O xaxado foi a maneira que eles encontraram para se livrar das danças tradicionais, como valsas e polcas, praticadas pelo bando no começo, que exigiam que um dos cangaceiros fizesse o papel de dama.

O cangaceiro Sereno, por exemplo, não dançava com outro homem de jeito nenhum. Ele ficava só espiando. O comportamento dele virou uma gíria muito popular nos anos 40 e 50: quem se recusa a dançar numa festa e fica somente olhando está “no sereno da festa”.

A dança do xaxado consiste em uma fila que circula pelo salão, com um cangaceiro atrás do outro e, ao circularem, cada um deles vai atirando a perna direita para frente, no ato de xaxar o chão. A graça da dança que se vê nos salões é o arrastado da alpercata no chão que faz o som sincronizado e alegre.

Atualmente, a dança é apresentada com os brincantes abusando dos gingados, mas originalmente consistia somente de saracoteio e de pé direito lançado para frente, como quem trabalha cavando a terra e lançando a semente.

Os cangaceiros dançavam em fila indiana: o comandante da fila, sempre o chefe do grupo ou o poeta mais tarimbado, puxava os versos cantados e o restante do bando respondia em coro, com letras de insulto aos inimigos, lamentando as mortes de companheiros ou enaltecendo suas aventuras, vitórias e façanhas.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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